Não é segredo para ninguém que a Grécia antiga ainda está presente no nosso dia a dia. Somos bombardeados constantemente com referências dessa cultura. Essas referências permeiam nossa forma de pensar, de agir, e de interagir uns com os outros, tornando mister a conclusão de que o pensamento contemporâneo dialoga e é influenciado por esse legado cultural.
Os mitos gregos, a partir de sua posição privilegiada na psicologia, nos permitem avaliar a estrutura do nosso pensamento. Essa revisitação aos contos antigos se justifica por sua carga simbólica e possibilidade de construção de uma compreensão profunda de angústias e sentimentos. O mito de Édipo se apresenta como uma narrativa rica de significados, sendo provavelmente o mito mais estudado na psicologia no século passado principalmente pelas análises freudianas.
De acordo com Freud (1900), no mito de Édipo encontramos um membro de uma família real nascido com uma pesada profecia nas costas. Seu pai, acreditando que o destino de sua família seria preservado, encabeça um ato cruel de assassinato infantil, que, por evidente, não afasta o destino indesejado. Já adulto, Édipo é confrontado com a mesma premonição e, com um ato semelhante à de seu pai anos atrás, age na tentativa infrutífera de afastar-se de seus desígnios. É interessante notar que ambas ações (tentativa de assassinato de Édipo por seu pai e afastamento de sua família adotiva) apresentam-se como atos necessários para a concretização dessa profecia.
Há toda uma linha de pesquisa comportamental que se baseia nessa referência mitológica como parâmetro representativo de desvios emocionais. Como referido, o mito é rico em significados, sendo, talvez, o mais proeminente, o envolvimento entre mãe e filho. Esse ponto destacado da tragédia de Sófocles amparou a conceituação de um esquema de pensamento e comportamento designado como Complexo de Édipo.
Outro legado grego, que desponta por sua relativa semelhança com o mito anterior, é o mito de Electra. Sendo, também, objeto de amplo estudo por Freud (1900), o mito narra a paixão doentia de Electra por seu pai, que a leva a assassinar a própria mãe.
Terminamos as rápidas, e, por isso, não exaustivas citações aos mitos gregos que influenciaram no desenvolvimento e aperfeiçoamento de teorias psicológicas com o mito de Narciso. É uma história bastante conhecida, mas suas imbricações ainda despertam interesse acadêmico e literário.
No mito de Narciso, Eco, por sua beleza e capacidades intelectuais, era bastante desejada por deuses e homens. Seu desinteresse, porém, gerou desgosto para aqueles que ansiavam por sua atenção. Tomada de assalto pela influência do deus Eros, ela se apaixona pelo jovem Narciso, o qual não tem olhos para outra pessoa a não ser a si mesmo. Desprezada por sua paixão, Eco se isola, mas suas lamúrias são ouvidas por Narciso que, acreditando se tratar da própria voz o chamando, tem o encontro fatal com sua imagem nas águas de uma fonte.
Essas três histórias são fictícias, por óbvio, mas representam uma construção intelectiva que se mantém atuante no imaginário contemporâneo. Freud (1900) chega a afirmar que os mitos, tal como os sonhos, são expressões codificadas do inconsciente; no entanto, ao contrário dos sonhos, são partilhados em público. Se puderem ser compreendidos, temos acesso à mente humana, e isto constituiria a chave para a saúde mental. Os mitos configuram-se como uma pista para nossa própria história psíquica (TERSIS, 1997).
Saindo da área da psicologia e entrando na esfera da arte, encontramos uma ligação entre os estudos realizados por Michel Foucault sobre os conceitos gregos de pahrrêsia e áskesis e sua pesquisa de artes visuais. (SANTOS, 2014). Para Foucault, o conceito de pahrrêsia (dizer a verdade) se relacionava ao princípio do cuidado de si (epimeleia heautou) onde, a partir deles, o indivíduo podia se construir estilisticamente como obra de arte. (NASCIMENTO, 2018).
O autor não se considerava um especialista nesse campo nem um crítico da arte, apesar de suas análises contribuírem com o desenvolvimento de noções estratégicas que apoiam o próprio estatuto disciplinar dessa área (COMETA, 2007).
A influência grega sobre o autor não se restringe a esse campo, visto que suas investigações sobre as práticas ascéticas gregas contribuíram para o desenvolvimento de sua noção de estética da existência (SANTOS, 2014).
O último aspecto abordado neste artigo sobre as influências do legado grego no pensamento contemporâneo é relacionado à política. A democracia das grandes civilizações ocidentais é herdeira direta do sistema político instituída na antiga Atenas.
Inicialmente, para que o sistema político de democracia ateniense pudesse surgir, foi necessário um processo de integração política externa chamado “sinoecismo”. Desse processo resultou a dissolução das aldeias originais para a formação da chamada Pólis Grega. Esse processo de centralização das decisões políticas permitiu o aumento do poderio grego contra ataques externos, além de possibilitar o florescimento e intercâmbio de teorias políticas.
Segundo Gobbi (2001), o sinoecismo implicou, no caso particular de Atenas:
[...]além da unificação dos distintos povoados em uma Polis e a mudança na concepção da justiça, uma lenta transformação política na qual se foi limitando paulatinamente o poder do rei. Primeiro o rei foi controlado por um tribunal aristocrático, em seguida este conselho foi dividido em três magistrados eleitos e com duração limitada a um ano. Esse grande processo não esteve isento de tensões entre os particularismos regionais e de rivalidades entre as distintas famílias aristocráticas que representavam as antigas aldeias.
É possível perceber que os conflitos gerados pelas mudanças legislativas ocorridas em Atenas derivavam de uma tensão entre o governo e a tradição. A autoridade do rei, em quase todas as sociedades antigas, advinha de uma suposta ordem natural que não podia ser questionada sob pena de ruir as estruturas sociais instituídas. Como compatibilizar a necessária adaptação da estrutura política para a sobrevivência de uma comunidade com os discursos legitimadores das ordens vigentes?
A modernidade política trouxe uma profunda mudança ao negar a pertinência do indivíduo à polis (COSTA, 2020). Essa mudança de perspectiva foi encabeçada pelo desenvolvimento de teorias contratualistas que baseavam a legitimidade do estado em um contrato social. Por evidente, esse contrato social era mais uma ficção política, um mito moderno. Esse mito desenvolvido com bastante interesse por autores chamados de contratualistas, ancorou-se em uma nova roupagem de ordem natural.
O século XIX nos legou uma compreensão histórica dos fenômenos sociais e, com isso, conseguimos enxergar claramente as pretensas “ordens naturais” como realmente são: Contingências históricas.
A contemporaneidade, assim, bebeu da fonte grega, mas adaptou o que aprendeu à sua nova realidade. O debate político, na antiga democracia ateniense, era centralizado na ágora, onde os indivíduos considerados cidadãos se digladiavam com instrumentos retóricos para convencer seus pares. Nos tempos atuais, nossa ágora ainda existe, mas está transmutada em um novo ambiente: As grandes mídias. Segundo Couldry (2013), a lógica midiática se apresenta como as diferentes formas em que as emissões midiáticas se transformam no objetivo principal da ação política.
Essa discussão está embebida em grande quantidade de interesses ideológicos, mas o paralelo entre o embate midiático contemporâneo e a teatralidade dos confrontos retóricos gregos está bastante clara.
Referências Bibliográficas:
COMETA, M., “Modi dell’ ékphrasis in Foucault”, in COMETA, M. e VACCARO, S. (Curs.), Lo sguardo de Foucault, Roma, Meltemi, 2007, pp. 37-61.
COSTA, Alexandre. Natureza x Governo. Arcos 2020.
COULDRY, N., HEPP, A. Conceptualizing Mediatization: Contexts, Traditions, Arguments. In Communication Theory Vol. 2, p.191-202, 2013.
FREUD, Sigmund. A Interpretação dos Sonhos. In: Obras Psicológicas Completas de Freud, IV, Rio de Janeiro, 1900.
GOBBI, Hugo Javier. Integração e liberdade: uma reflexão histórica. Revista Brasileira de Política internacional. Vol. 44, 2001.
NASCIMENTO, Carlos Eduardo Gomes. O QUE É ÁSKESIS NA FILOSOFIA DE MICHEL FOUCAULT? – Revista Ideação. Edição especial 2018. Disponível em:http://periodicos.uefs.br/index.php/revistaideacao/article/view/3021/2390. Acesso em: 07 de out. 2020.
SANTOS, Marta Souza. Michel Foucault, historiador da arte? Algumas considerações a respeito da influência da filosofia foucaultiana na historiografia contemporânea. X EHA,Encontro de História da Arte, 2014.
TERSIS, Antonio. A importância da cultura grega na construção dos vínculos. Estudos de Psicologia., Vol 14, nº 2, 81- 84. 1997.