Autores: Jezebel de Melo Eiras, João Victor dos Santos Bomfim, Nikolly Milani Simões Silva e Roberto Augusto Brito Alves.
É inegável a noção de autonomia que o homem adquiriu no último século, especialmente nas últimas duas décadas. A hegemonia da ideia de que cada pessoa é um sujeito de direitos e a noção de direitos naturais do homem de igualdade e autonomia dos povos e a necessidade de efetivar tais garantias fazem com que seja quase irrelevante a imposição de uma justificativa para tal (COSTA, 2020).
Com os adventos da tecnologia, a evolução das relações sociais e de trabalho e a concretização da ciência, cada vez mais pensava-se que o ser humano era um ser capaz de viver de forma muito independente socialmente. Não mais a família representava um dos pilares mais priorizados - tanto é que as relações familiares tornaram-se muito conturbadas atualmente - e os projetos sociais envolvendo outros grupos passaram a ser vistos como atividades secundárias. O homem virou um ser autônomo em sua quase totalidade.
Apesar disso, com a pandemia da Covid-19 e a necessidade do distanciamento e isolamento social, as noções de independência construídas nas últimas décadas foram colocadas em jogo. Como menciona a filósofa Claire Mairin, a pandemia fez com que a humanidade percebesse mais uma vez como o homem é vulnerável e necessitado do contato com os demais, da boa vivência em comunidade, da percepção de companhia e da rotina em conjunto. Afinal, nem toda a tecnologia do mundo é capaz de tirar de toda a comunidade global a principal característica que une a todos os indivíduos: a humanidade.
Um estudo feito por Ricardo Antonio Magalhães e July Mesquita Mendes Garcia e publicado na Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento fez uma comparação com uma literatura baseada em participantes que haviam sido expostos ao Ebola, H1N1, SARS, entre outras doenças epidêmicas e submetidos ao isolamento social. Literaturas anteriores constataram que, dentre os motivos de maior angústia, estavam o medo da doença e infecção, o tédio e a desinformação. O mais interessante é que, dentre esses medos, estava o receio do isolamento durar mais de dez dias. Se um isolamento de dez dias já era motivo suficiente para tamanha ansiedade entre os participantes, não se pode - ainda - imaginar os estragos emocionais que o isolamento de mais de um ano e meio decorrente da pandemia da Covid-19 causará, a longo prazo, no psicológico de todos que a ela foram submetidos. (MAGALHÃES, GARCIA; 2021).
Já em uma interessante matéria para a Veja Saúde, o psicólogo e psicanalista Francisco Nogueira fala em cinco fases psicológicas decorrentes da pandemia, as quais terão de ser trabalhadas ao longo dos anos na população. A primeira fase foi a da surpresa da pandemia, e a incerteza por ela causada. Com o isolamento veio a fase dois, cuja característica marcante foi o convívio excessivo em casa (o que, para aqueles que moram em família, resultou em conflitos internos e, para aqueles que moram sozinhos, resultou em um sentimento de sufoco). A terceira fase foi marcada pelo agravamento de problemas mentais como a depressão e a ansiedade. A quarta fase é uma suposta luz no meio das trevas, caracterizada pela esperança do afrouxamento do distanciamento e a expectativa de que as coisas vão retornar à normalidade em breve. A quinta fase pode ser descrita como a superação de todos os danos causados pelas fases anteriores, que terão de ser trabalhados em cada um (NOGUEIRA, 2021).
Em contrapartida, de uma visão da autonomia como algo que pode afetar a vida alheia, é importante também pontuar como a bioética se fez relevante no decorrer da pandemia. Enquanto, de um lado, a autonomia e liberdade foi afetada por fazer com que cada um tivesse que lidar com a pandemia de forma individual, em sua própria casa e pelo seu próprio bem, por outro a autonomia e a liberdade foi afetada também pelo bem dos demais. A bioética atuou no dilema liberdade individual versus combate à disseminação do vírus, fazendo com que cada um colocasse numa balança até que ponto era correto e razoável expor a si mesmo e a outros ao risco de contaminação em prol da realização de suas próprias vontades individuais (NORA, 2021).
Esse conflito entre liberdades individuais e segurança coletiva social ficou evidente, desde o início da pandemia, quando do acesso a notícias divulgadas em redes sociais e jornais. Casos de pessoas que se recusaram a respeitar o distanciamento, o uso de máscaras e as demais medidas sanitárias restritivas que visavam reduzir as chances de contágio e que foram impostas pelas autoridades governamentais locais sob a justificativa de que eram indivíduos com direitos de ir e vir que não poderiam ser tolhidos (NORA, 2021).
Ao passo que as liberdades individuais significam a capacidade do indivíduo de deliberar acerca de sua própria vida, também significam que tais escolhas não devem incidir de forma prejudicial na vida dos outros. Conforme pesquisa feita por Carlise Rigon Dalla Nora e publicada na Revista Bioética, é fundamental frisar a importância do conceito de interesse coletivo para a certa compreensão do papel da bioética na pandemia. Uma vez que o bem geral da comunidade é colocado em cheque, é preciso que algumas liberdades individuais sejam colocadas em segundo plano para que seja dada prioridade ao interesse coletivo. Essas restrições de autonomia não têm o condão de reprimir de forma injusta ou infundada as vontades dos indivíduos, como se fosse algum tipo de medida ditatorial, mas sim de evitar que a realização dessas vontades venha a causar danos à sociedade que sejam irreversíveis (NORA, 2021).
Independente da personalidade e do modo de vida de cada um antes da pandemia, é incontestável que a noção de soberania sobre si do homem foi alterada significativamente diante dos eventos recentes. As restrições impostas pelo bem geral da sociedade significaram também a restrição dos direitos de liberdade de cada um, o que por sua vez nos coloca em nossos lugares de peças de um grande quebra-cabeças chamado comunidade.
Bibliografia:
COSTA, Alexandre. O senso comum teórico dos juristas modernos. Arcos, 2020. Disponível em: <https://novo.arcos.org.br/o-senso-comum-teorico-dos-juristas-modernos/>. Acesso em: 25 ago. 2021.
MAGALHÃES, Ricardo Antonio. GARCIA, July Mesquita Mendes. Efeitos Psicológicos do Isolamento Social no Brasil durante a pandemia de COVID-19. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 06, Ed. 01, Vol. 01, pp. 18-33. Janeiro de 2021. Disponível em: <https://www.nucleodoconhecimento.com.br/psicologia/isolamento-social>. Acesso em: 25 ago. 2021.
MARIN, Claire. AYUSO, Silvia. Claire Marin: “Talvez sejamos muito menos individuais do que pensávamos”. El País, 02/09/2020. Dispnível em: <https://brasil.elpais.com/cultura/2020-09-02/claire-marin-o-confinamento-nos-mostrou-ate-que-ponto-somos-seres-sociais.html>. Acesso em: 25 ago. 2021.
NOGUEIRA, Francisco. As dores da alma mudam: os efeitos psicológicos da pandemia. Veja Saúde, 05/10/2020. Disponível em: <https://saude.abril.com.br/blog/com-a-palavra/as-dores-da-alma-mudam-os-efeitos-psicologicos-da-pandemia/>. Acesso em: 25 ago. 2021.
NORA, Carlise Rigon Dalla. Conflitos bioéticos sobre distanciamento social em tempos de pandemia. Revista Bioética 29 (1) - Jan-Mar 2021. Disponível em: <https://www.scielo.br/j/bioet/a/TpbKVtYS6cxs9dkhMtCCrLK/?lang=pt>. Acesso em: 25 mar ago. 2021.