Sim, o direito pode ser entendido como um conjunto de normas.

Essa compreensão, contudo, não permite concluir que esse conjunto de normas seja capaz de explicar e tratar, de forma direta e imediata, todas as situações concretas que lhe são submetidas.

O que se sabe, é que desde os primórdios dos tempos, o homem começou a crescer e se desenvolver dentro de um grupo social, por mais simples que fosse. Por consequência, a aplicação de normas que disciplinavam o comportamento dos membros de tais grupos se mostrou necessária à regulação das sociedades de vida coletiva. O objetivo da sistematização das regras de convivência nada mais é que a atribuição de direitos e deveres às pessoas que compõem determinado grupo social.

Nesse sentido, Aristóteles defende que o homem é um animal social e que, para que essa convivência seja possível, é imprescindível a criação de um sistema jurídico.

Enquanto que, para Alexandre Costa Araújo, “de acordo com o senso comum dos juristas, o direito tem como finalidade organizar a sociedade, definindo os direitos e os deveres de cada pessoa e, com isso, possibilitando a criação de uma sociedade harmônica e justa.” [1]

O direito como uma norma jurídica se distingue das demais regras sociais pela existência de duas premissas: a primeira diz respeito à aplicação da força coercitiva do poder social. O que significa dizer que, a obrigatoriedade dessas normas é oriunda do poder coercitivo do Estado, assim como o pagamento de impostos e tributos ao governo.

Por sua vez, a segunda premissa estaria ligada com o conteúdo da norma jurídica apresentada, ou seja, baseada na noção de justiça e equidade que o ordenamento jurídico seria capaz de proporcionar à sociedade e aos litígios dela inerentes. Assim, o direito seria visto como “lei e ordem, isto é, um conjunto de regras obrigatórias que garante a convivência social graças ao estabelecimento de limites à ação de cada um de seus membros. [2]

Os chamados “hard cases” de Dworkin permitem exemplificar essa impossibilidade explicativa automática das normas que formam o Direito. Em disputa filosófica com Hart, Dworkin avalia que os casos fáceis poderiam ser resolvidos por meio da subsunção da norma-regra jurídica às situações concretas, mas os casos difíceis, por outro lado, encontrariam resposta correta por meio de juízos valorativos, não subjetivos, que permitissem extrair a melhor alternativa dentre aquelas existentes na teia normativa do Direito.

Para ater-se à avaliação do Direito como complexo conjunto de normas, sem adentrar o centro da disputa Hart-Dworkin, é pertinente o registro feito por Struchiner e Brando, em referência à discricionariedade defendida por Hart como necessária à solução dos casos não explicados diretamente pelo texto normativo:

O fenômeno da textura aberta da linguagem diz respeito ao problema da incompletude essencial das descrições empíricas (Struchiner, 2002, pp. 14-16). Nessas situações, uma regra jurídica que transmitia um padrão de conduta bastante claro num dado contexto pode se tornar imprecisa, incapaz de indicar ao cidadão ou à autoridade ofi­cial uma conduta a ser adotada. Quando os materiais jurídicos se esgotam, o juiz exerceria discricionariedade (Hart, 2009 [1961], pp. 169-176) [3].

Mesmo sendo uma corrente importante dentro do direito, a que o compreende como um conjunto de normas, há influentes autores que defendem que a normatividade do Direito não está majoritariamente contida no texto da lei, mas na sua interpretação.

Logo, pensar o Direito como um sistema lógico formal dotado de racionalidade a partir do qual é possível extrair objetivamente a resposta para diversas situações concretas, apresenta uma série de problemas.

A tradicional identificação da norma com o disposto no texto legal é de difícil sustentação em razão do caráter elíptico da lei, cujo significado é muitas vezes dúbio, pois o texto pode ser interpretado de diversas formas. Dessa forma, quando se realiza a subsunção de um caso concreto ao disposto no texto, há que se reconhecer que o subjetivismo do aplicador da lei é muito maior do que o discurso racional objetivista do Direito, como alguns nos querem fazer crer.

A construção das normas se dá mediante a utilização de um discurso retórico que ressalta ao mesmo tempo em que omite possíveis interpretações do texto legal, mas rejeita o caráter dialético do texto. A magistratura quando decide, afirma que aquela decisão é a correta com base na racionalidade objetiva extraída do texto, omitindo muitas vezes os fundamentos políticos e subjetivos que sustentam a decisão.

Nesse sentido:

Ferramenta poderosa de domesticação política dos cidadãos, a dogmática jurídica é, ao mesmo tempo, produtora e resultado deste processo de fetichisação do discurso normativo. A homogeneidade resultante da lapidação dogmática do discurso da lei aniquila as sutilezas e especificidades do mundo que ela regula, reunindo a multiplicidade infinita das possibilidades semânticas na vala comum de um sentido que se propõe como único e objetivo [4].

Um caso recente ilustra esse cenário. Atualmente, está em discussão no Superior Tribunal de Justiça a possibilidade de fixação de honorários de sucumbência contra a fazenda pública por arbitramento, desconsiderando o comando do art. 85, do CPC. Se a norma é texto, a problemática não deveria existir, já que a redação do dispositivo é muito clara no sentido da impossibilidade da fixação dos honorários pelo juiz se houver como fazê-lo de outra forma. Todavia, não parece ser essa a posição de alguns ministros do Tribunal que, com base em argumentos ligados à ideia de proporcionalidade e equidade, compreendem que a lei faculta ao juiz a fixação por arbitramento.

Logo, não importaria qual metodologia supostamente lógica e objetiva se utilizaria para fundamentar uma decisão, o que de fato importaria seria a posição do julgador.

REFERÊNCIAS

[4] BISOL, J O vazio e o inacabado da lei. P. 189.

DWORKIN, R. Levando os direitos a sério. 3ª ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010.

[1] COSTA, A.A.. Introdução ao Direito, Cap. I. O conceito de direito, pag. 19. Disponível em <http://www.arcos.org.br/livros/introducao-ao-direito/o-conceito-de-direito>

[3] HART, H.L.A. O conceito de direito. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009.

MURÇA, D., ALELUIA, G. Honorários contra a fazenda pública: STJ definirá interpretação do Art. 85 do CPC. Migalhas, 2020. Disponível em - https://migalhas.uol.com.br/depeso/333771/honorarios-contra-a-fazenda-publica--stj-definira-interpretacao-do-art--85-do-cpc

[2]REALE, M. Lições preliminares de direito, p. 1.

STRUCHINER, N., BRANDO, M. Como os juízes decidem os casos difíceis do direito?. Em: Struchiner, Noel; Tavares, Rodrigo (org.). Novas fronteiras da teoria do direito. Rio de Janeiro: PoD; PUC-Rio, 2014. P. 12.