AUTORES: ABIGAIL, JOELANE, KATIA, PEDRO HENRIQUE, SAMUEL, VITÓRIA

A palavra tabu tem dentre seus significados, segundo o dicionário online Dicio [1]:Proibição religiosa ou controle social que restringe o uso de uma linguagem, de um gesto, ou de um comportamento; e tem como sinônimos: sagrado, inviolável, proibido, inquestionável. Assim, o tema aborto, por se relacionar intrinsecamente com o direito à vida se encaixa na definição de tabu, tanto em relação á prática em si como a mera discussão sobre.

Frisamos que o objetivo deste post é refletir sobre a discussão do aborto no Brasil, não tendo como condão defender a legalização ou a manutenção da proibição normativa. O que se pretende é discutir sobre como o debate é carregado de valores morais e/ou religiosos que impedem um debate crítico sobre o tema.

O valor vida é um dos mais importantes. A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, em seu artigo 3º [2] proclama: “Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”. Tal proteção é referendada em diversos diplomas legais ao redor do mundo, o que não é diferente no Brasil que no artigo 5º da Constituição de 1988 - CF/88 [3] afirma: “ Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:”. Há ainda os tipos penais previstos nos artigos 125, 126 e 127 do Decreto-Lei N 2.848 - Código Penal [4], que criminalizam a prática de aborto praticado pela gestante ou com o seu consentimento, a prática sem o consentimento da gestante e ainda prevê qualificadoras em caso de lesão corporal grave ou óbito, respectivamente.

Porém, o O Código Penal prevê duas mitigações aos tipos penais supracitados no artigo 128, ou seja, a exclusão de ilicitude no caso de: aborto necessário (para salvar a vida da gestante) e em tratando-se de aborto resultante de estupro. Além disso, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54 - ADPF 54, também inovou e trouxe outra excludente de ilicitude: o caso da interrupção da gestação de feto anencéfalo que, neste caso em específico, o Supremo Tribunal Federal - STF entendeu ser desnecessário uma mãe, que vivencia experiência tão sensível, se submeter ao crivo judiciário a fim de obter uma autorização para o procedimento médico, devendo ela mesma ponderar sobre a forma menos dolorosa de lidar com tal situação.

Ainda em relação à mitigação à vida, podemos citar o caso extraordinário do Decreto-Lei nº de 1969 - Código Penal Militar [5] o qual admite a aplicação da pena de morte a crimes militares cometidos em tempo de guerra.

Portanto, por mais que seja um direito fundamental, o direito à vida, por uma ótica jurídica, pode sim ser relativizado, inclusive com julgamentos em controle concentrado de constitucionalidade no STF que envolveram discussões que extrapolaram a esfera jurídica e adentraram discussões médicas e filosóficas.

A questão é que no Brasil, o debate acerca da legalização do aborto tem um foco menos jurídico ou médico/sanitário do que valorativo. Explicamos. O Brasil é um país majoritariamente cristão, sua colonização trouxe uma carga religiosa católica tão forte que até os dias atuais feriados religiosos estão em nosso calendário (ainda que a justiça já tenha se manifestado sob o argumento da proteção cultural), é comum encontrar símbolos cristãos em repartições públicas (em um Estado que se diz laico) e o brasileiro tem o hábito de sempre dizer: “Estou bem Graças a Deus”, “a cirurgia correu bem, Graças a Deus”, ou seja, sempre adicionar esse elemento divino às conversas.

Sem adentrar no mérito individual de crenças de cada pessoa, o que estamos colocando em perspectiva é sobre como essa visão impacta a discussão de uma política pública.

O censo de 2010 [6] apontou que de um total de 190.755.799 habitantes, 123.280.172 se declararam católicos e 42.275.440 se declararam evangélicos, assim 64,63% da população se declara católica. Se somarmos o número de evangélicos aos católicos, uma vez que estes também se colocam majoritariamente contra o aborto, temos um total de 86,79% da população no espectro cristão (não espírita).

Considerando que a posição cristã é de que a alma é infundida no novo ser no momento da concepção, não é estranho que grande parte da população seja contra o aborto sob tal argumento. Mas diante de tal conjuntura, a problemática não é ser contra o aborto sobre o argumento religioso, a questão é esse posicionamento eclipsar a discussão de uma política pública sob outros argumentos, em especial o de saúde pública.

Referência nos estudos sobre a descriminalização do aborto no Brasil, a professora, antropóloga e pesquisadora, Débora Diniz, reforça a importância em se considerar o aborto como questão sanitária, distanciando-se das apreensões morais que, recorrente e insistentemente, pairam sobre o tema. Todavia, apesar da forte incidência dos dogmas religiosos, em consonância com a Pesquisa Nacional do Aborto (PNA), feita, em 2016, pela Anis, "do total das mulheres que abortaram, 56% eram católicas e 25% protestantes ou evangélicas" [7].

Note-se, pois, que a reprimenda penal acaba por contrastar com os dados empíricos colhidos em pesquisa. Isto é, de acordo com relatório da Anis, "1 em cada 5 mulheres até os 40 anos já fez um aborto" [8]. Ademais, consta, neste relatório, que a América Latina "é a região do globo com maior taxa de abortos, embora seja também das regiões com maior incidência de leis punitivas". Esvaziada de eficácia, a norma penal em referência é motivadora de inúmeras consequências, as quais confrontam, diretamente, com o núcleo dos direitos fundamentais das mulheres, tais como a dignidade da pessoa humana, o direito à saúde e à cidadania.

Põe-se em foco o lapso temporal entre a vigência do Código Penal e a Constituição Federal de 1988. Aquele, de 1940, criminaliza o aborto e, de acordo com Débora Diniz, resta incompatível sob a égide constitucional. A professora ressalta que "uma leitura do Código Penal pela Constituição diz que eu não posso prender mulheres se é uma necessidade de saúde, se é uma questão de cidadania, se o aborto é parte da dignidade da vida das mulheres ao tomar essa decisão" [9]. A defensora pública da União, Charlene da Silva Borges, evidencia que o contexto histórico em que foi concebido o Código Penal, anterior à Constituição cidadã, espelha a desigualdade de gênero, de modo que a criminalização do aborto "representa uma forma de institucionalização da discriminação e da violência de gênero" [10].

Ainda em conformidade com o relatório feito pela Anis, "no Brasil, cerca de metade das mulheres que abortam todos os anos precisam ser internadas. São 250 mil mulheres a cada ano nos leitos do SUS por abortos inseguros, gerando complicações graves" [11]. O propósito da presente publicação é demonstrar a imprescindibilidade de se apartar os dogmas morais e religiosos de questões como o aborto, que devem ser encaradas sob a perspectiva sanitária. Caso contrário, perpetuam-se as sérias problemáticas hodiernas das quais a manutenção da criminalização do aborto, decorrente, principalmente, dos mencionados dogmas, é causa geradora. Algumas das consequências são "a incapacidade de reduzir o número de abortos, discriminação, desamparo e prejuízos para a saúde física e mental das mulheres, mesmo nos casos em que o aborto já é permitido" [12].

Contemporaneamente, os ditames constitucionais permeiam as demais normas do ordenamento jurídico: é o chamado "neoconstitucionalismo". O relatório da Anis traz-nos, então, três requisitos básicos que têm de ser cumpridos para que a constitucionalidade de dispositivo legal seja comprovada, quais sejam: a adequação, a necessidade e a proporcionalidade. Em conformidade com o relatório, a criminalização do aborto não cumpre tais critérios. Não seria adequada, na medida em que, fundamentando-se nos dados estatísticos, não consegue impedir a realização de abortos; também não é necessária, considerando-se a existência de outros métodos mais eficientes para reduzir quantitativamente os abortos, sem que, contudo, haja confrontação e violação aos direitos das mulheres; e, por fim, não é proporcional, porquanto "afeta desproporcionalmente os direitos fundamentais das mulheres, gerando altos custos para elas, como a mortalidade materna e o sofrimento físico e mental dos procedimentos inseguros. Além disso, aumenta gastos em saúde pública devido às complicações decorrentes de abortos inseguros e clandestinos" [13].

No julgamento da ADI 3.510/DF, a qual dispõe acerca da constitucionalidade das pesquisas com células-tronco embrionárias, diferenciou-se a pesquisa com células-tronco da temática referente ao aborto. Consoante os ministros Celso de Mello e Marco Aurélio, ao passo que falta à primeira a fertilização natural, haja vista a necessidade de intervenção externa para que ocorra a fecundação, na segunda, "haveria a vida humana no útero a ser interrompida por intervenção humana" [14].

Controverso também é o marco do início da vida humana. De acordo com o voto do min. Ayres Britto, relator da ADI supramencionada, a Constituição Federal é silente sobre o momento exato em que se verifica o início da vida humana [15]. Tal questão é, frequentemente, objeto de debate na doutrina, de modo que se tem, de um lado, a teoria natalista e, de outro, a teoria concepcionista. Aquela alinha-se ao modelo clássico de Direito Civil e defende que a personalidade mantém-se intrínseca ao nascimento com vida. De outra ponta, esta se afina ao modelo contemporâneo de Direito Civil e afirma que a personalidade tem de ser garantida desde a concepção. No entanto, em se tratando da descriminalização do aborto, pontua a professora Débora Diniz que tal discussão não é central para temática e questiona: "É uma pergunta filosófica e metafísica? Ou é uma pergunta sobre dignidade, cidadania e equidade? Nós ainda não fomos capazes de reescrever as perguntas que importam para a cena pública" [16].

Não se pode negligenciar, além do exposto, a questão de gênero que envolve todo este complexo assunto. Em um Congresso majoritariamente masculino, pautas que dizem respeito às mulheres tendem a ser medidas pelo olhar dos homens detentores do mandato. Como diz Simone de Beauvoir [17]: “Tudo o que os homens escreveram sobre as mulheres deve ser suspeito, pois eles são, a um tempo, juiz e parte”, afinal, o homem não enxergaria a mulher como seu igual pois a mulher é “o outro do homem”. Essa perspectiva permite compreender o caminho do ser mulher até o atual momento o que inclui a temática do aborto, afinal, uma vez que as mulheres não participam das decisões políticas importantes, ficam alijadas de inserirem pautas de seu interesse e sob sua própria perspectiva. Ainda que tal quadro tenha apresentado mudanças, porque mais mulheres conquistaram cargos de relevo, há aquelas que também possuem uma visão tradicionalmente cristã a respeito do aborto o que, mais uma vez, impede um debate para além da perspectiva moral.

Romper este cenário para articular uma discussão objetiva é um desafio, pois para haver um diálogo é preciso disposição de todas as partes para a compreensão sem julgamentos ou preconceitos, com base em dados que evidenciem as reais necessidades existentes e não fundados em uma visão idílica do que deveria ser a sociedade.

REFERÊNCIAS

[1] Disponível em: Thttps://www.dicio.com.br/tabu/. Acesso em: 18. ago. 2021.

[2] UNITED NATIONS. Human rights. Office the High Commissioner. Disponível em: https://www.ohchr.org/EN/UDHR/Pages/Language.aspx?LangID=por. Acesso em 18. ago. 2021

[3] BRASIL. Presidência da República. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/ConstituicaoCompilado.htm Acesso em: 18. ago. 2021.

[4] BRASIL. Presidência da República. Decreto-Lei nº 2.848 de1940 - Código Penal. Disponível em> http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-lei/Del2848compilado.htm. Acesso em 18. ago. 2021

[5] BRASIL. Presidência da República. Decreto-Lei nº 1001 de 1969 - Código Penal Militar. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del1001.htm Acesso em: 18. ago. 2021.

[6] INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo demográfico 2010. Disponível em: ttps://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/populacao/9662-censo-demografico-2010.html?edicao=9749&t=destaques. Acesso em 18. ago. 2021.

[7] Aborto : por que precisamos descriminalizar? : argumentos apresentados ao Supremo Tribunal Federal na Audiência Pública da ADPF 442 / Anis – Instituto de Bioética. – Brasília : LetrasLivres, 2019. Disponível em: https://anis.org.br/wp-content/uploads/2020/07/RELATORIO-ABORTO-PT.pdf. Acesso em: 19 de ago. de 2021.

[8] Aborto : por que precisamos descriminalizar? : argumentos apresentados ao Supremo Tribunal Federal na Audiência Pública da ADPF 442 / Anis – Instituto de Bioética. – Brasília : LetrasLivres, 2019. Disponível em: https://anis.org.br/wp-content/uploads/2020/07/RELATORIO-ABORTO-PT.pdf. Acesso em: 19 de ago. de 2021.

[9] DIP, Andrea. Débora Diniz: "Todas as mulheres fazem aborto, mas só em algumas a polícia bota a mão". El País, 2018. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/08/02/politica/1533241424_946696.html. Acesso em: 19 de ago. de 2021.

[10] Aborto : por que precisamos descriminalizar? : argumentos apresentados ao Supremo Tribunal Federal na Audiência Pública da ADPF 442 / Anis – Instituto de Bioética. – Brasília : LetrasLivres, 2019. Disponível em: https://anis.org.br/wp-content/uploads/2020/07/RELATORIO-ABORTO-PT.pdf. Acesso em: 19 de ago. de 2021.

[11] Aborto : por que precisamos descriminalizar? : argumentos apresentados ao Supremo Tribunal Federal na Audiência Pública da ADPF 442 / Anis – Instituto de Bioética. – Brasília : LetrasLivres, 2019. Disponível em: https://anis.org.br/wp-content/uploads/2020/07/RELATORIO-ABORTO-PT.pdf. Acesso em: 19 de ago. de 2021.

[12] Aborto : por que precisamos descriminalizar? : argumentos apresentados ao Supremo Tribunal Federal na Audiência Pública da ADPF 442 / Anis – Instituto de Bioética. – Brasília : LetrasLivres, 2019. Disponível em: https://anis.org.br/wp-content/uploads/2020/07/RELATORIO-ABORTO-PT.pdf. Acesso em: 19 de ago. de 2021.

[13] Aborto : por que precisamos descriminalizar? : argumentos apresentados ao Supremo Tribunal Federal na Audiência Pública da ADPF 442 / Anis – Instituto de Bioética. – Brasília : LetrasLivres, 2019. Disponível em: https://anis.org.br/wp-content/uploads/2020/07/RELATORIO-ABORTO-PT.pdf. Acesso em: 19 de ago. de 2021.

[14] COÊLHO, Marcus. A constitucionalidade das pesquisas com células-tronco. Consultor Jurídico, 2017. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2017-jul-16/constituicao-constitucionalidade-pesquisas-celulas-tronco. Acesso em: 20 de ago. de 2021.

[15] Ação Direta de Inconstitucionalidade 3.510 Distrito Federal. Supremo Tribunal Federal, 2010. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=611723. Acesso em: 20 de ago. de 2021.

[16] ANTUNES, Leda. Debora Diniz: 'A criminalização do aborto mata, persegue e não reconhece a capacidade de escolha das mulheres'. Portal Geledés, 2020. Disponível em: https://www.geledes.org.br/debora-diniz-a-criminalizacao-do-aborto-mata-persegue-e-nao-reconhece-a-capacidade-de-escolha-das-mulheres/. Acesso em: 19 de ago. de 2021.

[17] DE BEAUVOIR, Simone. O Segundo Sexo (1. Dos fatos e Mitos). Difusão Europeia do Livro. 1970. 4ª ed. São Paulo. Tradução Sérgio Milliet.

Fontes das imagens:
https://outraspalavras.net/outrasaude/para-dificultar-ainda-mais-o-aborto-legal/
http://desabafodemae.com.br/canela-durante-a-gravidez-seguro-ou-e-melhor-evitar/