Discentes: Guilherme Aranha; Izabela Lemes; Lucas Orsi, Sofia Vergara; Tiago Reis; Walter Cunha.

Hans Kelsen, em sua Teoria Pura do Direito, busca estabelecer uma ciência jurídica livre do Direito Natural. Para tanto, propõe que a Teoria Pura do Direito seja uma teoria do Direito positivo, afastando, a princípio, categorias transcendentais jusnaturalistas, como a Moral e a Justiça, entendendo-as como alheias ao objeto da ciência do Direito:

Kelsen, transportando o positivismo filosófico para o direito, buscou a objetividade científica do ordenamento jurídico. Com isso, retirou todo o conteúdo moral e axiológico do direito, reduzindo a justiça à validade. Enquanto o direito natural é baseado na dicotomia bom e mau, o direito positivo é indiferente a conceitos valorativos, pois não busca o justo e sim o útil. (BALTAZAR, 2009. p. 85)

Nesse sentido, Kelsen caracteriza o Direito como um sistema normativo (CHAHRUR, 2016, p. 38), em que a validade das normas (positivas) se depreende não em cotejo com elementos extrínsecos ou metafísicos, mas por sua relação com outras normas igualmente positivas. É de uma outra norma que uma norma retira seu fundamento de validade. Em razão dessa cadeia relacional, o ordenamento jurídico se apresenta para Kelsen como um sistema escalonado (COSTA, 2020), em que se pode distinguir normas hierarquicamente superiores e inferiores.

A discussão em torno do conceito kelseniano de norma fundamental vai ao encontro do núcleo do esforço teórico do jurista austríaco. Isso pois neste ponto de sua teoria se pode colocar a questão: quão bem sucedido foi Kelsen em sua empreitada de conceber uma teoria do Direito sem recorrer ao instrumental do jusnaturalismo?

Antes de mais nada, faz-se necessário esclarecer o que Kelsen entende por norma fundamental. Conforme visto acima, o autor descreve o ordenamento jurídico como um sistema escalonado, em que normas inferiores retiram seu fundamento de validade em normas superiores. Decretos obtêm sua validade das leis, e estas se fundamentam na constituição. Ao atingir a constituição, no entanto, a Teoria Pura se depara com a seguinte questão: sendo ela a mais alta norma positiva na hierarquia do ordenamento, em que se fundamenta a validade da constituição? (KELSEN, 1999. p. 139)

Para solucionar esta questão, Kelsen propõe que a constituição retiraria seu fundamento de validade da norma fundamental. A norma fundamental seria um pressuposto lógico de validade do sistema. Sendo pressuposta, ela não é norma positiva.

Assim está em que a norma fundamental não é norma de Direito positivo. Afinal, em havendo um ato de vontade que crie a norma fundamental, teria de haver uma norma ponente deste mesmo ato de produção, que por sua vez estaria vinculada a uma outra (norma) que lhe seria superior. A regressão seria, vez mais, ilimitada. Com supedâneo nisso, a teoria kelseniana afirma o caráter de pressuposto gnosiológico da Grundnorm. Ante a premissa de que um ato normado é ponente de norma positiva, fica claro que a norma fundamental não é norma positiva, mas axioma fundamental do sistema de Kelsen garantidor do fechamento operativo do sistema. (LIMA e CATÃO, 2019. p. 248)

O conteúdo desta norma fundamental, em ordenamentos que possuem uma constituição positivada, restringe-se a conferir validade à constituição positiva: devemos conduzir-nos como a constituição prescreve (KELSEN, 1999. p. 141).

Inicialmente, cabe observar que, por mais que proponha uma teoria do Direito positivo, Kelsen acaba por precisar recorrer a uma norma pressuposta para conseguir operar o fechamento do sistema jurídico. Afinal, caso fosse essa uma norma posta, ela deveria ter que fundamentar sua validade em outra norma posta, iniciando uma cadeia infinita. Dessa forma, com a norma pressuposta, ele parece aproximar-se do jusnaturalismo do qual se propôs a escapar. E nesse sentido se critica este conceito.

A norma fundamental, gnoseológica que é, estabelece, como regra metodológica básica para as significações jurídicas, “[...] um critério de egocentrismo significativo, através do qual fica excluído do âmbito de significação qualquer dado que não possa ser derivado das normas positivas válidas” (WARAT, 1995, p. 300). Desse modo, o argumento da desnecessidade de justificação transcendental cai por terra quando se percebe o caráter “inicial” e, ao mesmo tempo, “final” da norma fundamental. A semelhança com os paradigmas de direito natural é inegável. (CALIL e LEITE, 2018. p. 254)

No entanto, apesar da inegável semelhança com o jusnaturalismo, a norma fundamental de Kelsen difere de pressupostos metafísicos do Direito Natural porque esses são entendidos como essências, como aspectos da natureza humana ou, ao menos, como imperativos lógicos. A norma fundamental kelseniana, por sua vez, é contingente e historicamente determinada.

Assim é que a norma fundamental sempre se refere a uma Constituição (no sentido de norma máxima dum sistema de Direito Positivo) concreta, historicamente dada. Somente ao se interpretar o sentido objetivo do ato constituinte – através da norma fundamental, confere-se validade a um sistema normativo, indo desde a Constituição até os demais dados jurídicos derivados daí no processo de positivação. Por outros torneios: somente quando se pressupõe a norma fundamental e se interpreta o conteúdo subjetivo do ato constituinte como seu sentido objetivo é que se toma o Direito positivado como sistema de normas válidas. (LIMA e CATÃO, 2019. p. 249-250)

Ou seja, a norma fundamental se refere à conjuntura histórica específica que, inaugurando um ordenamento jurídico, legitima uma constituição. Diferentemente de um positivismo cientificista, propagado por pensadores como Jellinek, que defende “ser dever do jurista a descrição das conexões de causa e efeito dos fatos sociais à maneira da ciência natural, devido à ‘força normativa’ inerente às relações fáticas de dominação” (CHAHRUR, 2016. p. 38), Kelsen considera que, para a ciência do Direito concebida na Teoria Pura, não são relevantes os aspectos políticos, morais e sociológicos que configuram este ato inaugural. Interessa ao Direito apenas o reflexo que essa contingência lança sobre o sistema normativo: conferir validade à constituição. Isso seria a norma fundamental.

Permanece conhecimento, mesmo na sua verificação teorético-gnoseológica, de que a norma fundamental é a condição sob a qual o sentido subjetivo do ato constituinte e o sentido subjetivo dos atos postos de acordo com a Constituição podem ser pensados como o seu sentido objetivo, como normas válidas, até mesmo quando ela própria o pensa desta maneira (KELSEN, 1999. p. 143).

Assim, fica desvelado o papel que a norma fundamental opera na teoria kelseniana. Por se referir a um ato constituinte concreto e historicamente localizado – contingente, portanto – a norma fundamental se afasta do fundamento metafísico do Direito Natural. Ao mesmo tempo, por ser vazia de conteúdo axiológico (LIMA e CATÃO, 2019. p. 249), ela permite a construção de uma teoria geral do Direto, não vinculada a nenhum ordenamento específico:

Na Teoria Pura do Direito Kelsen se preocupa com a forma do direito, acolhendo a lição de Aristóteles, para quem só é possível fazer ciência do universal, eis que o particular escapa à capacidade generalizante e sintetizante própria do entendimento humano. E no que diz respeito à experiência jurídica, somente a forma se mostra de maneira universal, sendo o seu conteúdo infinitamente variável segundo determinadas condições históricas, políticas, econômicas, ideológicas etc. Por isso Kelsen se vê obrigado a conceber um fundamento de validade para o direito que seja formal e vazio – tal como veremos na seção 3.2 –, de modo a opô-lo à indeterminação e ao particularismo próprio dos critérios morais e políticos sob os quais boa parte das teorias jurídicas da época foram gestadas (COSTA MATOS, 2011. p. 46).

Por fim, respondendo ao questionamento aqui colocado, vê-se que o pensamento kelseniano navega um meio termo entre a metafísica jusnaturalista e o juspositivismo cientificista, para quem o Direito deve ser concebido como um fato (CHAHRUR, 2016. p. 38). É a forma pela qual Kelsen concebe a norma fundamental como elemento de fechamento do ordenamento jurídico que permite que sua teoria ocupe este espaço: uma teoria geral do Direito, aplicável, em princípio, a qualquer sistema jurídico, em qualquer lugar e a qualquer tempo; e que não depende de elementos universais e transcendentes para fundamentar a validade do sistema.

Bibliografia

BALTAZAR, Antonio Henrique Lindemberg. Princípios e regras: uma abordagem. Lex Humana. Revista da Universidade Católica de Petrópolis, n. 2, p. 66-82, jul./dez. 2009

CALIL, Mário Lúcio Garcez e LEITE, Carlos Malta. Notas sobre a norma hipotética fundamental em Hans Kelsen. Revista de Ciências Jurídicas e Sociais da UNIPAR. Umuarama. v. 21, n. 2, p.247-262, jul./dez. 2018

CHAHRUR, Alan Ibn. A importância teórica e prática da norma fundamental. Revista de Informação Legislativa. Brasília a. 53, n. 211, p. 35-53, jul./set. 2016

COSTA MATOS, Andityas Soares de Moura. A norma fundamental de Hans Kelsen como postulado científico. Revista da Faculdade de Direito da UFMG, Belo Horizonte, n. 58, p. 41-84, jan./jun. 2011

COSTA, Alexandre. Hermenêutica Jurídica, Cap. V (Neopositivismo), item 2: Teoria Pura do Direito. Arcos, 2020.

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito, 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

LIMA, Helder Gonçalves e CATÃO, Adrualdo Lima. Kelsen entre a construção da moldura e o conteúdo da norma fundamental. Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, Porto Alegre, n. 40, p. 243-255, ago. 2019