Módulo 1 - Apresentação do curso
- 18/8 : Não haverá aula, em função da Aula Magna promovida pelo CADIR
- até 20/8: Leitura
- 20/8: Aula
- 25/8: Relatório Semanal
2. Introdução
Muitos cursos de Introdução ao Direito apresentam o direito apenas do modo como ele é visto pelo senso comum dos juristas. Nessa visão, o jurista é, basicamente, um técnico: alguém que aprende a operar bem certos “instrumentos” (leis, códigos, decisões) e que, por isso, precisa decorar os conceitos usados na prática jurídica e aprender o “modo correto” de pensar e aplicar o direito.
Cursos que adotam essa perspectiva distinguem o direito da moral para justificar o fato de que a validade das normas jurídicas independe do seu conteúdo ético. Eles também explicam as relações sociais exclusivamente em termos das normas que as regulam, ressaltando que o jurista deve se preocupar apenas com a necessidade de cumprir os deveres impostos pelas leis, independentemente das consequências de suas decisões, tanto para as partes envolvidas no conflito quanto para a sociedade em geral.
Em tais cursos, repete-se o brocardo ubi societas, ibi ius ("onde há sociedade, há direito") para reforçar a ideia de que as normas jurídicas estatais são o cimento de uma sociedade organizada, justa e solidária. Fala-se na "vontade do povo" como se fosse a fonte natural de validade do direito, mas essa vontade é rapidamente identificada com aquilo que o próprio estado produz, como se tudo que viesse de uma autoridade estatal já fosse, apenas por isso, válido e legítimo.
Esse modo de introduzir o estudante ao direito contribui para a reprodução da ideologia tecnicista que predomina entre os juristas: como um futuro técnico, o estudante deve ser treinado para "funcionar" como um bom operador do sistema de justiça, exercendo as funções de advogado, juiz ou promotor. Como a prática jurídica é fundada no senso comum dos próprios juristas (que eles próprios chamam acriticamente de “ciência do direito”), a função do professor deveria ser a de transmitir a seus alunos um conjunto de conhecimentos prontos e acabados: os modos estabelecidos de se interpretar e aplicar o direito, que lhes permitirão ser assimilados ao campo jurídico.
O resultado típico desse processo é que os estudantes dirijam seus esforços a responder aquilo que o professor (ou a banca do concurso, ou o examinador da OAB) desejam ouvir, em vez de serem estimulados a formular perguntas autônomas e a explorar caminhos originais. Como os estudantes universitários tipicamente provêm de um sistema educacional que os treinou mais a reproduzir conhecimentos acumulados do que a refletir com autonomia crítica, os próprios alunos tendem a se sentir confortáveis nesse tipo de modelo, que representa uma continuidade de seu itinerário formativo.
Nesse ambiente, tende a se desenvolver uma figura que foi muito bem descrita por Machado de Assis, em um de seus textos de fina ironia: o "medalhão". No conto "Teoria do Medalhão", Machado contou a história de um pai que explicava a seu filho que, no tocante às ideias, se ele queria ser um homem importante, melhor seria não as ter (2015, p. 288). No século XIX, Machado chamou essa figura ilustre de medalhão. Hoje, poderíamos atualizar essa denominação para celebridade ou influencer: gente que se distingue por ter uma audiência cativa, e não por ter alguma coisa relevante para dizer a ela. O medalhão/influencer repete as noções do senso comum, que desagradam a poucos e, ditas com o estilo apreciado por seu público, aparentam constituir as mais inequívocas verdades.
É uma velha sabedoria retórica que os argumentos não convencem um auditório por serem corretos, mas por serem conformes às opiniões e aos sentimentos de quem os ouve. Muitas vezes, os cursos de introdução ao direito parecem seguir o conselho do conto machadiano: o pensamento original, longe de garantir um bom futuro no campo jurídico, funciona como um obstáculo para o estudante desenvolver as competências que serão exigidas, especialmente para serem aprovados em um concurso público: decorar os textos legais, as decisões paradigmáticas e as categorias que compõem o senso comum dos juristas.
O problema é que nenhuma das afirmações feitas em um curso jurídico é ingênua. Nosso conceito de direito define a nossa compreensão sobre o papel social dos juristas e determina a maneira como interagimos com as normas jurídicas. O conceito de direito define as relações que cada um de nós estabelece com o poder político organizado e com as ordens que ele nos dirige. Cada uma das respostas dadas às questões fundamentais sobre o direito representa uma tomada de posição ideológica: não se trata da busca de uma verdade neutra, mas do estabelecimento de uma forma de compreender a sociedade e de nos relacionarmos com ela.
Fantasiar um posicionamento ideológico com uma máscara de cientificidade não parece a opção mais honesta a se tomar, especialmente frente a alunos que estão começando o curso de direito e que ainda não tiveram oportunidade de aprender a desmontar esse tipo de armadilha. Porém, o professor que ensina o direito sob esse enfoque tem grandes chances de ser bem-visto pelos seus alunos, visto que boa parte deles ingressa no bacharelado em direito justamente em busca desse conhecimento pseudotécnico, que os habilita a serem percebidos como verdadeiros juristas. O objetivo desses estudantes não é o de conhecer o direito, mas de aprender a operá-lo, tal como um músico talentoso, que é capaz de tocar instrumentos, mesmo sem nada conhecer de teoria musical.
A comparação entre o direito e a música é útil, mas tem limites. Tanto o direito quanto a música têm um lado técnico: há técnicas de execução, estilos, estruturas. Um sambista pode tocar de ouvido e ainda assim ser um grande artista. A diferença é que, na música, sua escolha não é imposta aos outros: você pode gostar ou não, pode ouvir ou não. No direito, as decisões dos juristas incidem sobre a vida alheia. A atividade jurídica é, inevitavelmente, política.
A valorização de um sambista talentoso e intuitivo não ameaça a legitimidade de outras abordagens musicais. Todavia, quando um jurista confunde a sua própria abordagem com a forma correta de aplicar o direito, ele coloca em risco a legitimidade de outras perspectivas. Por esse motivo, ensinar a técnica jurídica, sem discutir seus limites epistêmicos nem seus pressupostos éticos, reforça a ilusão de que o senso comum dos juristas é um critério apto a permitir uma avaliação objetiva da legitimidade das interações sociais.
Enquanto a música admite e celebra a pluralidade de gêneros, o discurso jurídico opera sob o pressuposto de que existe uma resposta correta a ser identificada pelo Sistema de Justiça. Os juristas são como músicos que entendem existir apenas um estilo adequado de composição e execução musicais: aquele que segue os cânones reconhecidos por uma tradição. Um músico que considera boa música apenas aquela que ele mesmo aprecia é uma figura ridícula. Um jurista acrítico, produto comum da educação contemporânea (que não opera apenas nas faculdades de direito, mas também nos cursos preparatórios para concursos e para o exame da OAB), é estimulado a ter orgulho de sua ortodoxia, percebida como resultado de um conhecimento técnico especializado.
Isso não significa que devamos deixar de lado o aspecto técnico dos cursos jurídicos. Uma graduação em direito precisa preparar seus estudantes para o exercício profissional, tornando-os capazes de ocupar funções no Sistema de Justiça. Porém, a valorização da técnica não deve conduzir a uma miopia tecnicista, tendente a formar profissionais sem um olhar crítico acerca das práticas em que estão envolvidos. Todo curso que abdica de sua função crítica tende a perder prestígio ao longo do tempo, assim como os profissionais que não conseguem adaptar suas abordagens ao contexto de uma sociedade em ritmo acelerado de mudança.
Um estudante de direito que ingressa hoje no bacharelado atuará ao longo de várias décadas e, fatalmente, vivenciará uma série de transformações no direito. As leis podem mudar rapidamente, sendo previsível que, no prazo de poucos anos, serão alteradas parcelas relevantes do direito eleitoral, do direito administrativo e do direito processual.
As práticas jurídicas são mais estáveis que o conteúdo das leis, mas elas também se alteram constantemente, embora essas transformações sejam normalmente percebidas após um processo de lenta acumulação de transformações. Estratégias argumentativas e decisórias que eram adequadas quando um juiz de direito estudava na graduação, hoje podem se mostrar ineficientes. Inovações tecnológicas, como a Inteligência Artificial Generativa, podem alterar radicalmente as competências necessárias para realizar as práticas de nossas profissões.
As teorias jurídicas parecem ser mais estáveis que as práticas que elas engendram, pois cada perspectiva teórica pode ser aplicada de diversas maneiras. As teorias são os mapas conceituais que utilizamos, que nos permitem distinguir o que precisa ser diferenciado (tipos de direitos, de decisões, de processos, etc.), bem como superar distinções que foram um dia hegemônicas, mas que se tornaram problemáticas com o passar do tempo (entre tipos de filhos, tipos de orientação sexual ou de identidade de gênero). Porém, ao longo de sua carreira, todo jurista perceberá modificações teóricas relevantes.
A soma desses motivos faz com que uma graduação em direito precise capacitar seus estudantes a se utilizarem das categorias dominantes no senso comum, mas também a compreender suas complexas relações com a sociedade em que se inserem, bem como as implicações práticas das teorias que esses discursos mobilizam. Não parece sólido um curso de direito que prepare seu estudante para o presente, sem formar profissionais capazes de adaptar seus conhecimentos e suas práticas às transformações sociais.
Esse é um tipo de habilidade que exige uma compreensão crítica dos conceitos técnicos, bem como uma aguda capacidade reflexiva acerca de questões jurídicas fundamentais: Quais são as relações entre direito e política? Em que medida o direito é uma questão de normas? Existe uma interpretação correta para cada caso? Cada uma dessas perguntas pode ser respondida de várias formas e uma disciplina introdutória não pode se limitar a ensinar os estudantes a tocar um certo estilo musical: ela precisa preparar o estudante para ter um vasto repertório de gêneros, compreender suas potencialidades e limitações, e fazer escolhas autônomas acerca do tipo de música jurídica que irá compor ou executar.
Os alunos devem ser formados para aliar o domínio da técnica (ou seja, dos cânones argumentativos dominantes) à compreensão das implicações políticas de suas escolhas. Com isso, talvez seja possível formar profissionais que não se limitem a operar o direito de maneira competente, mas que tenham capacidade de refletir sobre o seu papel na sociedade e de participar ativamente da construção dos novos rumos do direito.
3. Estudo
3.1 Leitura obrigatória
- Assis, Machado de (1881). Teoria do Medalhão. Em: Assis, Machado de. Obra Completa, v. II. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.
Também pode ser ouvido no Spotify, lido por Paulo Carvalho (Pop Histórias) ou no canal Ouvido Mágico:
3.2 Leitura sugerida
- Costa, Alexandre (2025). A persistência do medalhão.
Texto escrito que busca atualizar o conto Teoria do Medalhão para os dias atuais. O texto foi construído a partir de uma base elaborada por IA generativa (GPT 5.1), a partir de prompt que solicitou uma atualização do conto de Machado para os dias atuais.
- Hart, H. L. A (1961). O Conceito de Direito. Cap. I: Questões Persistentes. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1994.
Herbert Hart é um dos grandes teóricos do direito do século XX, tendo se notabilizado por ter promovido, na cultura anglo-saxã, uma abordagem jurídica inspirada na filosofia analítica. Seu principal livro é justamente O conceito de direito, obra de grande impacto em sua época e que até hoje consideramos como um dos textos clássicos do positivismo jurídico.
- Lyra Filho, Roberto. Por que estudar direito, hoje?
3.3 Leitura complementar
- Costa, Alexandre Araújo (2024). Pesquisa Jurídica (Curso). Metodologia.arcos.
O presente curso de introdução ao direito se concentra na compreensão do discurso jurídico predominante no senso comum. O curso de Pesquisa Jurídica integra os cursos de Metodologia da Pesquisa em Direito, voltando-se a compreender como é possível produzir novos conhecimentos acerca do direito.
Caillosse, Jacques (1995). Introduir au Droit. Paris: Montchrestien.
Este livro discute o que é a introdução ao direito, sendo que um trecho dele é citado no ponto a seguir. Assim, esta indicação serve como referência bibliográfica da citação ao livro de Caillosse.
3.4 Introduções ao direito
Os professores de introdução ao direito somente podem apresentar o campo jurídico a seus alunos a partir do ponto de vista que lhes é particular. Porém, é pouco comum que os livros introdutórios expliquem claramente qual é o enfoque a partir do qual eles são construídos.
O mais comum é que tais obras se dediquem a descrever o direito, mas falem pouco de si mesmas e dos desafios enfrentados por seus autores. Um dos pouquíssimos livros que conheço voltados a discutir as funções de uma disciplina introdutória no campo jurídico é Introduzir ao Direito (1995), de Jacques Caillosse, de onde retiro as seguintes reflexões:
"A introdução ao direito nunca foi um gênero fácil. Seu próprio objeto o proíbe. Não há nada inocente em dizer do direito que ele é uma ordem, ou um sistema. A realidade presente sob esses termos desafia o discurso linear. O recorte e a organização da matéria jurídica requer ferramentas intelectuais apropriadas. É preciso contar aqui com noções que se contêm e se condicionam mutuamente. O direito não se descobre por sequências sucessivas, cada uma permitindo compreender o conteúdo da seguinte. No universo circular do direito, é difícil controlar assim seus efeitos. Os conceitos iniciais, que tornam possível uma primeira "montagem" do objeto jurídico, procedem de um conhecimento global acerca dele próprio. O fato de ser facilmente identificável não torna esse desafio menos difícil. Todavia, o seu reconhecimento justifica o abandono de toda abordagem linear, onde as noções se sucedem e se encadeiam, sem jamais colidir, para desvelar, pouco a pouco, conclusões necessárias." (Caillosse, 1995)
É ingenuidade acreditar ser possível apresentar o direito sob uma perspectiva neutra ou impessoal. A ninguém é dado abandonar o seu próprio olhar, mas é possível desenvolver uma certa reflexividade: uma capacidade de perceber as formas pelas quais nossos pontos de vista definem as nossas percepções sobre o direito. Quando percebemos que nosso olhar não é objetivo, mas que se trata apenas de uma das possíveis descrições que podemos fazer do mundo, podemos desenvolver estratégias para enriquecer nosso horizonte de compreensão.
Por esse motivo, em vez de cair na armadilha da busca de uma (sempre ilusória) neutralidade, nossa estratégia será multiplicar os enfoques, ressaltando a particularidade de cada ponto de vista. A cada Módulo, indicaremos obras introdutórias diferente, de modo que os estudantes possam entrar em contato com uma multiplicidade de visões sobre o direito e, com isso, tecer suas percepções a partir de elementos plurais.
Começaremos com um livro meu, pois a função do professor é a de apresentar um caminho possível de aprendizado. Mas seguiremos por meio da exploração de outras cartografias, para que os estudantes possam escolher seus próprios itinerários.
- Costa, Alexandre (2001). Introdução ao Direito: uma perspectiva zetética das ciências jurídicas.
Este é um livro que me é, ao mesmo tempo, familiar e estranho. Por um lado, ele foi meu primeiro livro publicado, em 2001, o que o torna muito caro para mim. Ele consolida os cursos de introdução ao direito que ministrei entre 1999 e 2000, no início de minha carreira docente. Todavia, o eu de 25 anos atrás é bastante diverso do eu de hoje. Passado um quarto de século, eu abordo vários temas de maneira diferente, tanto que a estrutura do presente curso não segue o itinerário do livro. Porém, essa distância ressalta o desafio de toda obra escrita: continuar sendo uma referência interessante, mesmo quando se distancia do contexto no qual os textos foram originalmente concebidos.
3.5 Outras mídias
- Hart, H. L. A (1988). H.L.A. Hart Interview Part Five: The Major Works. YouTube.
Trata-se do audio de parte de uma longa entrevista contida na playlist H.L.A Hart in conversation with David Sugarman. Neste ponto, Hart explica um dos motivos pelos quais ele escreveu seu principal livro.
- Direito & Literatura. Teoria do Medalhão, de Machado de Assis. TV e Radio Unisinos.
- PodManas (Podcast), 25/04.
- O caminho de Guermantes (podcast), n. 76.
4. Atividades
4.1 Atividade Complementar: Teoria do Medalhão
Reescreva o texto Teoria do Medalhão, adaptando-o aos nossos dias.