Módulo 1 - Apresentação do curso

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2. Introdução

Vários são os cursos introdutórios que apresentam o direito apenas tal como ele é visto pelo senso comum dos juristas. Segundo essa perspectiva, o jurista é um técnico que deve operar bem os seus instrumentos de trabalho e, por isso, introduzir o estudante ao mundo jurídico significa oferecer-lhe os conceitos básicos da dogmática positivista e, dessa maneira, ensinar-lhe o modo correto de pensar o direito.

Cursos que adotam essa perspectiva distinguem o direito da moral para justificar o fato de que a validade das normas jurídicas independe do seu conteúdo ético; esclarecem as distinções entre mundo dos fatos e mundo do direito para ressaltar que o jurista deve se preocupar apenas com relações de dever-ser; explicam as relações entre direito subjetivo e direito objetivo para evidenciar que toda a preocupação do jurista deve girar em torno das normas; enumeram as fontes do direito para salientar que apenas as leis são realmente capazes de criar direitos e obrigações; discorrem sobre as ciências que tratam do direito para privilegiar-se o estudo dogmático.

Tais cursos ensinam que ubi societas, ibi ius (onde há sociedade, há direito) para fortalecer a ideia que as normas jurídicas estatais são o cimento de uma sociedade organizada, justa e solidária. Eles indicam que a vontade do povo é a fonte natural de validade das normas, mas tendem a identificar a vontade do Estado com a vontade do povo, na medida em que se comprometem com a ideia circular de que toda norma estatal é válida pelo fato de ser criada por autoridades constituídas pelo próprio Estado.

Optar por esse modo de introduzir ao direito implica contribuir para a reprodução da ideologia tecnicista que está na base dessa perspectiva de ensino: como um futuro técnico, o estudante deve receber os conhecimentos que o capacitem a tomar parte da atividade jurídica prática, exercendo as funções de advogado, juiz ou promotor. Dado que a prática jurídica é fundada no senso comum dos juristas (que eles próprios chamam indevidamente de “ciência do direito”), basta o professor transmitir aos alunos os conhecimentos prontos e acabados correspondentes aos modos estabelecidos de se interpretar e aplicar o direito. Com isso, o estudante é adestrado a responder aquilo que o professor deseja ouvir, em vez de ser estimulado a formular perguntas novas e a explorar caminhos originais.

Machado de Assis, em um de seus textos de fina ironia, contou a história de um pai que explicava a seu filho que, no tocante às ideias, se ele queria ser um homem importante, melhor seria não as ter (2015, p. 288). No século XIX, Machado chamou essa figura ilustre de medalhão. Hoje, poderíamos atualizar essa denominação para influencer: pessoas que se distinguem por terem uma audiência cativa, e não por terem alguma coisa relevante a dizer. O medalhão/influencer repete as noções do senso comum, que a desagradam a poucos e, ditas com o estilo apreciado por seu público, aparentam constituir as mais inequívocas verdades.

É uma velha sabedoria retórica que os argumentos não convencem um auditório por serem corretos, mas por serem conformes às opiniões e aos sentimentos de quem os ouve. Muitas vezes, os cursos de introdução ao direito parecem seguir o conselho do conto machadiano: o pensamento original, longe de garantir um bom futuro no campo jurídico, funciona como um entrave para o estudante desenvolver as competências que serão exigidas deles, especialmente para serem aprovados em um concurso público: decorar os textos legais, as decisões paradigmáticas e as categorias que integram o senso comum dos juristas

Acontece, porém, que nenhuma das afirmações feitas em um curso jurídico é inocente. Nosso conceito de direito define a nossa compreensão sobre o papel social do direito e determina a maneira como interagimos com as normas jurídicas. O conceito de direito define as relações que cada um de nós estabelece com o poder político organizado e com as ordens que dele emanam. Cada uma das respostas dadas às questões fundamentais sobre o direito representa uma tomada de posição ideológica: não se trata da busca de uma verdade neutra, mas do estabelecimento de uma forma valorativamente adequada de compreender a sociedade e relacionar-se com ela.

Fantasiar um posicionamento ideológico com um manto de cientificidade não parece a opção mais honesta a se tomar, especialmente frente a alunos iniciantes, que ainda não aprenderam a desmontar esse tipo de armadilha e costumam atribuir demasiado crédito à autoridade do professor. Porém, o professor que ensina o direito sob esse enfoque tem grandes chances de ser bem-visto pelos seus alunos, visto que boa parte deles ingressa no bacharelado em direito justamente em busca desse conhecimento pseudotécnico, que os habilita a serem percebidos como verdadeiros juristas. O objetivo desses estudantes não é o de conhecer o direito, mas de aprender a operá-lo, tal como um músico talentoso, que é capaz de tocar instrumentos, mesmo sem nada conhecer de teoria musical.

A comparação entre o direito e a música tem suas potencialidades, por acentuar o aspecto técnico dessas duas artes, mas oculta a dimensão política que não pode ser destacada da atividade jurídica. Na música, um artista decide sobre seu próprio estilo e não impõe suas concepções a outras pessoas. No direito, um jurista decide sempre acerca da vida dos outros, o que faz com que a sua atividade tenha uma dimensão política acentuada.

Um sambista talentoso e intuitivo pode exercer a sua arte de forma legítima, pois esse exercício não coloca em risco a legitimidade de outras abordagens musicais. Todavia, quando um jurista confunde a sua própria abordagem com a forma correta de aplicar o direito, ele coloca em risco a legitimidade de outras perspectivas. Por esse motivo, ensinar a técnica jurídica sem discutir seus limites epistêmicos nem seus pressupostos éticos serve apenas para reforçar a ilusão de que o senso comum dos juristas pode funcionar como uma espécie de critério objetivo para avaliar a legitimidade das interações sociais.

Enquanto a música é um campo plural, em que todas as abordagens são bem-vindas, o discurso jurídico opera sob o pressuposto de que existe uma resposta correta a ser identificada pelos atores do Sistema de Justiça. Os juristas são como músicos que entendem existir apenas um estilo adequado de composição e execução musicais: aquele que segue os cânones reconhecidos por uma tradição. Um músico ortodoxo, que considera boa música apenas aquela que ele mesmo aprecia, é uma figura patética. Um jurista acrítico, resultado típico da educação contemporânea (que não opera apenas nas faculdades de direito, mas também nos curso preparatórios para concursos e para o exame da OAB), em vez de ser considerado ridículo, é estimulado a ter orgulho de seu pretenso conhecimento técnico especializado.

Isso não quer dizer que devamos deixar de lado o aspecto técnico dos cursos jurídicos. Uma graduação em direito que não prepare seus estudantes para o exercício profissional, torando-os capazes de ocupar funções no Sistema de Justiça, será percebido como inútil. Porém, a valorização da técnica não deve conduzir a uma miopia tecnicista, tendente a formar profissionais sem um olhar crítico acerca das práticas em que está envolvido abdica de influenciar no constante processo de transformação dessas próprias atividades. Todo curso que abdica de sua função crítica tende a perder prestígio ao longo do tempo, assim como os profissionais que não conseguem adaptar suas abordagens ao contexto de uma sociedade em ritmo acelerado de mudança.

Um estudante de direito que ingressa hoje nos bacharelado atuará ao longo de várias décadas e fatalmente vivenciará uma série de transformações no direito, que nunca é estático. As leis mudam rapidamente, especialmente em certos ramos do direito. No prazo de poucos anos, é comum serem alteradas parcelas relevantes do direito eleitoral, do direito administrativo e do direito processual.

As práticas jurídicas são mais estáveis que o conteúdo das leis, mas elas também se alteram constantemente, sendo extensas as transformações que se acumulam de uma década para outra. Estratégias argumentativas e decisórias que eram adequadas quando um juiz de direito estudava na graduação, hoje podem se mostrar ineficientes. Inovações tecnológicas, como a Inteligência Artificial Generativa, podem alterar radicalmente as competências que um jurista precisa ter, para realizar as práticas de sua profissão.

As teorias jurídicas parecem ser mais estáveis que as práticas que elas engendram, pois cada perspectiva teórica pode ser aplicada de diversas maneiras. As teorias são os mapas conceituais que utilizamos, que nos permitem distinguir o que precisa ser diferenciado (tipos de direitos, de decisões, de processos, etc.), bem como superar distinções que foram um dia hegemônicas, mas que se tornaram problemáticas com o passar do tempo (entre tipos de filhos, tipos de orientação sexual ou de identidade de gênero). Porém, ao longo de sua carreira, todo jurista perceberá modificações teóricas relevantes.

A soma desses motivos faz com que uma graduação em direito precise capacitar seus estudantes a se utilizar das categorias dominantes no senso comum, mas também a compreender suas complexas relações com a sociedade em que se inserem, bem como as implicações práticas das teorias que esses discursos mobilizam. Não parece sólido um curso de direito que prepare seu estudante para o presente, sem formar profissionais capazes de adaptar seus conhecimentos e suas práticas às transformações sociais.

Esse é um tipo de habilidade que exige uma compreensão crítica dos conceitos técnicos, bem como uma aguda capacidade reflexiva acerca de questões jurídicas fundamentais: Quais são as relações entre direito e política? Em que medida o direito é uma questão de normas? Existe uma interpretação correta para cada caso? Cada uma dessas perguntas pode ser respondida de várias formas e uma disciplina introdutória não pode se limitar a ensinar os estudantes a tocar um certo estilo musical: ela precisa preparar o estudante para ter um vasto repertório de estilos, compreender suas potencialidades e limitações, e fazer escolhas autônomas acerca do tipo de música jurídica que irá compor ou executar.

Os alunos devem ser formados para aliar o domínio da técnica (ou seja, dos cânones argumentativos dominantes) à compreensão das implicações políticas de suas escolhas. Com isso, talvez seja possível formar profissionais que não se limitem a operar o direito de maneira competente, mas que tenham capacidade de refletir sobre o seu papel na sociedade e de ser parte ativa na definição dos novos rumos do direito.

3. Estudo

3.1 Leitura obrigatória

  • Assis, Machado de (1881). Teoria do Medalhão. Em: Assis, Machado de. Obra Completa, v. II. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994.

3.2 Leitura sugerida

  • Hart, H. L. A (1961). O Conceito de Direito. Cap. I: Questões Persistentes. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1994.
Herbert Hart é um dos grandes teóricos do direito do século XX, tendo se notabilizado por ter promovido, na cultura anglo-saxã, uma abordagem jurídica inspirada na filosofia analítica. Seu principal livro é justamente O conceito de direito, obra de grande impacto em sua época e que até hoje consideramos como um dos textos clássicos do positivismo jurídico.
  • Lyra Filho, Roberto. Por que estudar direito, hoje?
Roberto Lyra Filho: Por que estudar direito, hoje?
Roberto Lyra Filho foi um professor de Direito Penal e de Filosofia do Direito que teve uma importante atuação na Universidade de Brasília entre as décadas de 1960 e 1980 e foi um dos nomes mais importantes da teoria marxista do direito no Brasil. Ele se notabilizou pela postura crítica

3.3 Leitura complementar

  • Costa, Alexandre Araújo (2024). Pesquisa Jurídica (Curso). Metodologia.arcos.
Metodologia da Pesquisa em Direito
Cursos de metodologia de pesquisa para graduação e pós-graduação em Direito
O presente curso de introdução ao direito se concentra na compreensão do discurso jurídico predominante no senso comum. O curso de Pesquisa Jurídica integra os cursos de Metodologia da Pesquisa em Direito, voltando-se a compreender como é possível produzir novos conhecimentos acerca do direito.

3.4 Introduções ao direito

Caillosse, Jacques (1995). Introduir au Droit. Paris: Montchrestien.

"A introdução ao direito nunca foi um gênero fácil. Seu próprio objeto o proíbe. Não há nada inocente em dizer do direito que ele é uma ordem, ou um sistema. A realidade presente sob esses termos desafia o discurso linear. O recorte e a organização da matéria jurídica requer ferramentas intelectuais apropriadas. É preciso contar aqui com noções que se contêm e se condicionam mutuamente. O direito não se descobre por sequências sucessivas, cada uma permitindo compreender o conteúdo da seguinte. No universo circular do direito, é difícil controlar assim seus efeitos. Os conceitos iniciais, que tornam possível uma primeira "montagem" do objeto jurídico, procedem de um conhecimento global acerca dele próprio. O fato de ser facilmente identificável não torna esse desafio menos difícil. Todavia, o seu reconhecimento justifica o abandono de toda abordagem linear, onde as noções se sucedem e se encadeiam, sem jamais colidir, para desvelar, pouco a pouco, conclusões necessárias."

Essas palavras de Caillosse abrem este espaço, voltado a indicar algumas possíveis introduções ao direito. Não se trata de indicar como o direito pode ser apresentado, mas de mapear algumas alternativas possíveis e discutir suas consequências. Começaremos com um livro meu.

  • Costa, Alexandre (2001). Introdução ao Direito: uma perspectiva zetética das ciências jurídicas.
Introdução ao Direito
Esta página se volta a disponibilizar o download da versão em PDF do livro: COSTA, Alexandre Araújo. Introdução ao direito: uma perspectiva zetética das ciências jurídicas. Porto Alegre: Fabris, 2001. Introdução ao Direito: uma perspectiva zetética das ciências jurídicasVersão em PDFIntroducao_ao_Direito.pdf2 MBdownload-circleIntrodução Zetética ao DireitoVersão em docxIntrodução
Este foi meu primeiro livro publicado, em 2001. Ele consolida os cursos de introdução ao direito que ministrei entre 1999 e 2000, no início de minha carreira docente. Passados tantos anos, eu escreveria várias coisas de maneira diversa. Porém, creio que a maior parte do livro continua atual, o que ainda me permite utilizá-lo como material de apoio para o curso.

3.5 Outras mídias

  • Hart, H. L. A (1988). H.L.A. Hart Interview Part Five: The Major Works. YouTube.
Trata-se do audio de parte de uma longa entrevista contida na playlist H.L.A Hart in conversation with David Sugarman. Neste ponto, Hart explica um dos motivos pelos quais ele escreveu seu principal livro.
  • Direito & Literatura. Teoria do Medalhão, de Machado de Assis. TV e Radio Unisinos.

4. Atividades

4.1 Atividade Complementar: Teoria do Medalhão

Reescreva o texto Teoria do Medalhão, adaptando-o aos nossos dias.

5. Recursos

5.1 Fluxograma atualizado