Ser ou não ser, uma coisa em tempo de uberização.
Autores: Holiton Oliveira e Arthur Benetele
A queda do muro de Berlim em 9 de novembro de 1989, enfim, a última barreira impeditiva da conexão global cai. Liberdade! “Milhares passaram por ela, comemorando e chorando, em cenas transmitidas ao redor do mundo. Muitos escalaram o muro e o quebraram com martelos e picaretas. Foi o clímax de um ano turbulento.”(BBC. 2019) A separação do mundo em blocos na Guerra Fria não era somente uma divisão socioeconômica e política, mas também uma cisão segundo o consumo. De um lado, o mundo ocidental, propulsionado pela pujante economia capitalista após a Segunda Guerra Mundial, difundia suas ideias de liberdade, consumo e livre-comércio ao redor do globo, do outro, o mundo socialista, ensimesmado em um modelo de dirigismo estatal já ultrapassado, que demandava uma abertura e atualização econômica, já apresentava sinais de enfraquecimento. Obviamente, a ideologia liberal prevaleceu.
A liberdade unificou o consumo, os países e mercados se abriram, permitindo uma permuta em massa de bens, ocorreu a chamada globalização econômica (CARVALHO, 2016). Nesse cenário, contudo, o mais importante que ocorreu foi a conexão de comunicações. Antes a interlocução de dados era feita de maneira simplória, ou seja, lenta e ineficiente, hoje, TUDO está conectado. A partir disso, houve uma unificação dos valores sociais, imbuída a todos os usuários de tecnologia ao redor do mundo, em decorrência do uso de sistemas de comunicações. Tal cultura e valores do mundo globalizado são, de certa forma paradoxais, incitam uma individualidade e independência sem precedentes dos seus membros, mas em uma rede social infinita, os agrupamentos sociais se transmutam, deixam de ser coletivos e e tornam-se massas, com transição para a rede social.
A conexão global impulsiona uma cultura do valorização social da conectividade. A qual, por sua vez, sempre demanda novas tecnologias de conexão, sempre com inovações, últimos lançamentos. Tem-se, assim, um ciclo constante de consumo de novas mídias e equipamentos. Película, tela, som, capacidade de enviar e receber arquivos, localização, fotos, jogos diversão, em um, ou vários toques, na palma da sua mão. O desenvolvimento da sociedade feita através do homem, para o homem, adquire uma nova forma de impulso com a evolução da inteligência artificial e da capacidade de conexão, a possibilidade de interação entre dispositivos.
O consumo se expande, a troca deve ser constante, não somente as tecnologias, mas as coisas também. Inclusive, surge a “internet das coisas” IdC, conforme Jonas Valente, citando Fred Trindade “quando tem diversas soluções envolvendo a comunicação máquina a máquina. Quando há soluções integradas numa rede única, onde publicam informações delas e consomem de outras, aí estamos falando de IdC”. Nessa lógica, reside a pergunta: como pode, uma “coisa” optar por consumir outra “coisa”? A resposta é simples: da necessidade e do fluxo constante do consumo humano, somado à necessidade que as suas “coisas” têm de consumir e demandar outras “coisas”.
O consumo em excesso do indivíduo e de suas “coisas” gera uma obsolescência constante. Um artefato tecnológico é ultrapassado por outro mais potente, avançado, recente ou qualquer adjetivo de marketing digital que queiram usar, e acaba sendo substituído por outro. Nesse interím, no entanto, cabe o alerta de que “um crescimento infinito é incompatível com um mundo finito e que tanto nossas produções como nossos consumos não podem ultrapassar as capacidades de regeneração da biosfera” ( LATOUCHE, 2009). Tal pensamento malthusiano é legítimo nos nossos dias atuais, mesmo com a prosperidade do crescimento pelo crescimento, com a maior parte das tecnologias interligadas, com novas plataformas, com a existência de polos tecnológicos, como São Francisco, todos em pleno vapor, há a necessidade de reconhecer a finitude das coisas e de como lidar com isso.
Por certo, o homem liberal, o indivíduo, conforme dito pelos liberais clássicos, deixou de ser senhor e escravo da sua própria volição, ao contrário, no paradigma em que vivemos, os números e os algoritmos são os determinantes da vontade do indivíduo, não mais operam como simples dados a posteriori que são julgados e arguidos pela consciência, são em si aqueles que modelam a vontade e a consciência do ser. Isso é facilmente perceptível na atualidade, algoritmos podem identificar pessoas, estudar seu perfil e sugerir o seu item de consumo ideal, a publicidade constante cria e fomenta demandas fúteis e artificiais, há sugestões de consumo para você, em sites que nunca foram visitados, eles sabem dos seus desejos e apresentam-lhe outros, sabem do seu movimento, localização, e decidem se autorizam ou impedem o acesso em determinados lugares.
Outrossim, o uso de aplicativos, ou seja, conforme Acosta e Ruppenthal:
Com um simples clicar de botão, os softwares direcionam a oferta e demanda mercadológica, guiando motoristas e entregadores de aplicativos para quem requisita seus serviços. Desenvolvidos sob um novo espectro funcional, estabelecem novas relações de trabalho e modificam a ideia de chefe e empregado. ( Acosta e Ruppenthal, 2019)
Com efeito a necessidade de ganhar o sustento recebe essa nova ferramenta, com nome de grandes empresas, neste caso a “Uber” empresa gestora do aplicativo, madrinha do novo conceito uberização. O termo uberização foi cunhado para caracterizar essa nova forma de gerenciamento e organização do trabalho. (Acosta e Ruppenthal, 2019) O trabalho por demanda sem patrão, flexível e informal, impulsionado por uma inteligência artificial que movimenta de forma significativa a economia. A liberdade de quando trabalhar colide com falta de segurança em caso de sinistros e infortúnios. Há caminhos sem volta, neste caso, a conexão entre indivíduo e aplicativo maculou empregados e empregadores, ambos, tendem a não quererem ou não poderem voltar ao status anterior.
Por isso, a opressão tecnológica aflige indivíduos, assim, precisamos de uma carta digital que recupere a dignidade humana (GELI, 2018). As legislações carecem de regulamentação sobre o mundo digital, como usá-lo, como trabalhar nesse ambiente, assinar documentos, receber educação formal. Não é a toa que, no Brasil, a Lei de Proteção de Dados, fora ratificada a menos de 3 anos (2018), sendo que a Internet e as tecnologias em si carregam relevância a mais de três décadas. Qual a garantia existe para saber quem de fato está do outro lado do teclado, perfis são voláteis, IPs são mascarados, a pessoa digital adquire existência e desaparece com a mesma facilidade. Economia, trabalho e cultura sofrem uma mutação acelerada para adequar-se ao novo paradigma tecnológico e vêm recheadas de insumos produzidos pelo mundo digital que afetam a vida real, e pessoas reais.
Referências Bibliográficas:
ACOSTA, Emerson Trindade; RUPPENTHAL, Melani. Uberização do trabalho 2019. Disponível em: https://www.ufrgs.br/jornal/uberizacao-do-trabalho/
GELI, Carles. Byung-Chul Han: “Hoje o indivíduo se explora e acredita que isso é realização. Periódico EL País. Barcelona . 2018. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/02/07/cultura/1517989873_086219.html
LATOUCHE, Serge. Os Empanzinados do Hiperconsumo. 2012. Disponível em: https://educezimbra.wordpress.com/2017/05/22/os-empanzinados-do-hiperconsumo/
Queda do Muro de Berlim: Como os eventos de 1989 mudaram o mundo. BBC News, Brasil. 2019. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-50323088
VALENTE, Jonas. Internet das Coisas: saiba como essa tecnologia pode afetar sua vida. Repórter Agência Brasil – Brasília. 2019. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2019-09/internet-das-coisas-saiba-como-essa-tecnologia-pode-afetar-sua-vida
CARVALHO, S. M. C.. O Desenvolvimento Econômico e o Processo de Globalização. In: Seminário de Jovens Pesquisadores em Economia e Desenvolvimento (SJPE&D), 2016, Santa Maria. Anais do Seminário de Jovens Pesquisadores em Economia e Desenvolvimento. Santa Maria, 2016. v. 3.