Qual Direito se quer?

As profundas reflexões a que este curso nos levou sugere, por último, uma análise das possibilidades do Direito enquanto curso. Ora, se por um lado começamos a investir a Filosofia enquanto forma autônoma do pensamento, trazendo aquilo que Aristóteles nos mostra na Metafísica, 982b-983a, a saber, o espanto - thaumazein - diante do que parece dado, incutindo uma forma de não comodismo; o itinerário intelectual lançou luzes sob os aspectos mais cruciais da investigação à resposta o que é Direito.

Ora, de possa de uma discussão sobre a possibilidade de um essencialismo metafísico, podemos verificar que um dos grandes problemas da filosofia, como Habermas apresenta no debate com o Ratzinger, no texto Dialética da Secularização, é pensar a possibilidade de fundamentos em uma sociedade pretensamente pós-metafísica.
Perguntando ao filósofo alemão sobre em que consiste aceitar a normatividade jurídica, o teólogo alemão levanta o problema clássico da legitimidade das leis.

Sobre isso, o diagnóstico de Kolakowski, em Modernity on Endless Trial, que afirma que a modernidade não encontrou seu ocaso, mas está se deslindando em novas formas de exacerbação de sua estrutura centrada no homem e nas capacidades humanas, lança já no final da Idade Média, com William Ockham, a partir da teoria dos poderes temporais e divino do papa, buscando uma separação, as bases para solapar as condições que permitiriam questionar a fundamentação metafísica acerca da política e do Direito.
Luis de Boni, em seu texto O não-poder do papa em Guilherme de Ockham, afirma que a discussão mesma à época, século XIV, versava sobre questões teológicas sobre a potestas papae, buscando uma fundamentação de outra ordem que não apenas supernatural.  Não seria apenas um problema de fundamento religiosa, mas se daria a brecha para que, como afirma Maquiavel, a questão política pudesse ser debatida afastando a influência religiosa.

Esse problema chegou à Modernidade como debate metafísico, portanto, as interdições e as críticas religiosas foram traduzidas como interdições e críticas à metafisica, como se depreende das Investigações de Hume, seção I, o qual crítica teorias religiosas como abstraídas em sentido metafísica. Sobre isso, já no Livro III do Tratado, o autor escocês afirma que as bases da ética e moral são produzidas via acordo social e não advindas de fundamentos metafísicos, acordos esse lá derivado das paixões.

Diante dos interditos da Modernidade, o Direito passou a tomar, diante do quadro critico das teorias contratualistas de Locke, Hume, Rousseau e Kant, como dado a questão de que o fundamento metafísico ou qualquer possibilidade extra política como questão a ser tratada no quadro do debate político-jurídico não teria espaço. Kelsen mesmo, seguindo a sendo de uma lógica de Razão Pura kantiana, da segunda critica, aplicada aso Direito, imaginou uma teoria pura por estar ausente a influência das condições de condicionalidades empíricas, no dizer kantiano. Kelsen, assim como a fundamentação lançado por Kant, supõe haver uma norma fundamental para o Direito extrajurídica, contudo, ausente de uma força metafísica. Um constructo aos moldes kantianos de como fruto da Razão. A resposta de um realismo ou mesmo do giro linguístico expõe a insatisfação com a proposta de fundamentação via fundamento último, reforçando aspectos mais de procedimentalidade ou operacionalidade jurídicas.

Diante de um quadro tão complexo de visões sobre o Direito, o fio condutor parece constituir uma senda que afasta qualquer discussão metafísica como ultrapassada. Contudo, o curso de Direito não pode assumir como dadas questões tão cruciais e marcantes. Embora os realistas reforçam o caráter prático do Direito diante da demanda real que se apresenta às portas do tribunal; bem como os dedicados ao caráter da linguagem reconheçam de forma marcante os aspectos linguísticos do Direito, que não escapam ao horizonte da interpretação e argumentação, além da persuasão, como destaca Viehweg; ou os constitucionalistas destaquem a força fundante dos direitos fundamentais; um curso de Direito tem que ser capaz  de articular os elementos normativos com a realidade jurídica, questionando os seus próprios fundamentos, inclusive os tomados por consolidados. Isso significa que o curso, se se pretende reflexivo, deve incorporar esse debate filosófico e suas derivações de forma madura e organizada.

Um simples debate filosófico em toda aula não seria uma forma eficaz de construção desse panorama reflexivo, exigindo um curso mais focado em duas etapas, aos moldes de um itinerário intelectual: I)  a construção crítico-reflexiva, diante de um quadro plural que avança no desenvolvimento de matérias que analisem mais criticamente a teoria, bem como a pratica do Direito; II) um caminho dogmático que seja capaz de lidar com a realidade jurídica. Embora autônomos, deveria haver disciplinas de diálogo que aproximassem ambas, como uma análise teórica da atividade judicial.  A questão versaria sobre formatar uma disciplina que seguisse os moldes de análise de casos à luz das teorias e da dogmática, verificando seus pontos de encontro e divergência, em especial nas decisões de cortes superiores.
Isso se justifica para que o estudante perceba as bases filosóficas que se escondem nas decisões judiciais. O mito de uma neutralidade e isenção gerou a falsa sensação de indiferença entre prestação jurisdicional e base teórica - alguma filosofia subjacente -, contudo, cada decisão e defesa de ideias jurídicas implica trazer à baila uma visão de mundo.

A grande desvinculação entre teoria e prática cria um profissional do Direito incapaz de perceber que a atuação da prestação jurisdicional envolve e consolida uma visão de Direito. A ausência de crítica, como forma de ingenuidade dogmática, pervade a sala de aula, fazendo do aluno um mero “concordador” de uma teoria posta. Nesse pormenor, os professores são pouco devotados ao debate franco, sendo-lhe conveniente apenas assumir sua teoria sem adentrar visões contrárias.

Se o curso seguisse uma lógica maiêutica, exigindo para cada disciplina dogmática terminada in toto, uma reflexão metateórica sobre ela, os profissionais dos direito poderiam fazer jus ao nome juristas e não meros operadores. Aliás, a operação jurídica seria constitutiva e construtiva inclusive sem formas reflexivas, afastando algum tipo de inovacionismo jurídico pelas decisões dos juízes, que afasta a segurança jurídica. Poder-se-ia fomentar a produção de teses jurídicas debatidas e não apenas impostas pela força estatal do juízo.

Em suma, a Unb tem essas possibilidades, mas ainda persiste nos professores um espírito dogmático no sentido de entrave, principalmente em matérias teóricas, sendo a diversidade e pensamento ainda um flatus vocis, sem referencialidade no mundo acadêmico do Direito. Por mais que se busque a diversidade com palavras, a reflexão fraca ainda é uma utopia - lugar sem lugar - no curso de Direito.

Bibliografia

ARISTÓTELES. Metafísica. v. II. São Paulo: Loyola, 2009.

BONI, L.  O não-poder do papai em Guilherme de Ockham. In.: VERITAS. Porto Alegre: PUC-RS, v. 51, n. 3, 2006, p. 113-128.

HABERMAS, J.; RATZINGER, J. Dialética da Secularização. São Paulo: Editora Ideias & Letras, 2007.

HUME, D. Investigações Acerca do Entendimento Humano. São Paulo: Editora Unesp, 2004.

KOLAKOWSKI, L. Modernity on Endless Trial. Chicago: The University of Chicago Press, 1990.