O Paradoxo da Soberania e a Constituição Simbólica do Chile

INTRODUÇÃO

Recentemente na história dos acontecimentos políticos, mais precisamente no dia 25 de outubro de 2020, o povo do Chile votou um plebiscito cujo conteúdo tratava nada menos que da mudança da própria constituição desse país. Com 78% dos votos, os eleitores decidiram por convocar uma assembleia constituinte, cuja composição deverá respeitar a paridade de gênero (50% mulheres e 50% homens) e será formada por meio de novo pleito, previsto para o presente mês de abril de 2021. Além disso, também se decidiu que representantes do congresso chileno atual não participarão automaticamente da assembleia e que haverá uma cota de assentos reservados para os povos indígenas.

Esse fato histórico foi precedido por meses de massivos e violentos protestos e, para além de chamar atenção do mundo, suscitou a discussão sobre assuntos importantes para o meio jurídico e político, notadamente sobre questões acerca do poder constituinte e sobre o fenômeno da constitucionalização, a exemplo da indagação sobre ser ou não o plebiscito um instrumento adequado para esse fim.

Portanto, após uma curta contextualização dos acontecimentos, segue-se uma breve análise de algum desses conceitos e dos debates nos quais se inserem. Ao que se prosseguirá uma tentativa de explicação desses acontecimentos, por meio da teoria da constitucionalização simbólica tal qual desenvolvida por Marcelo Neves e da teoria dos sistemas de Luhman.

O PANO DE FUNDO DAS MANIFESTAÇÕES

As evasiones – como ficaram conhecidas as primeiras manifestações – iniciaram-se com uma multidão de estudantes que, por volta do dia 17 de outubro de 2019, se reuniram nas estações de metrô de Santiago para pularem a catracas e forçarem a passagem sem pagamento, como forma de protesto contra um aumento de 3,75% no valor da tarifa de metrô (30 pesos chilenos, ou o equivalente a R$0,17 no câmbio de então).

Com o confronto de manifestantes e forças policiais, a situação rapidamente se agravou, o sistema de transportes colapsou e logo havia milhares de pessoas nas ruas. Houve incêndios, mortes e centenas de detenções de manifestantes. Por fim, o governo chileno convocou as forcas armadas para lidar com a situação, decretou estado de emergência e toque de recolher. O movimento passou a ser, então, chamado de estaliido social.

Mas nem a suspensão do aumento da tarifa, logo no início das manifestações, nem a posterior tentativa de barganha do governo ¬ que ofereceu mudanças na legislação ¬ foram suficientes para acalmar os ânimos, pois estava claro que esse aumento tinha servido apenas como estopim para a manifestação de um descontentamento muito maior, com raízes muito mais profundas e complexas. Os manifestantes passaram a pedir a mudança da constituição do país andino.

A Constituição do Chile de 1980 é herança da ditadura de Pinochet. Somente pelo fato de ter sido elaborada por um governo autoritário, ou, dito de outra forma, de não ter tido origem no poder soberano do povo (ROUSSEAU, 1900 p. 20), ela já é considerada ilegítima por boa parte da população chilena ¬ e isso está consoante com a ideia de Loewestein, segundo a qual um estado totalitário não possuiria Constituição, na medida em que não realizam os princípios constitucionais (1975, p. 128). Mas, além disso, a ditadura de Pinochet e sua respectiva Constituição ainda vigente serviram como o primeiro laboratório para os economistas da Escola de Chicago testarem seu modelo econômico neoliberal, o que foi feito às custas de uma das ditaduras mais sangrentas da América do Sul, o que também permanece na memória coletiva do povo chileno.

Muito embora não se possa dizer que a implementação do modelo econômico liberal no Chile tenha sido um total fracasso, visto que o país tem atualmente os melhores Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) – 0,851 em 2019 –, crescimento econômico e renda per capta (U$15.092,00 em 2019) do continente sul-americano, é possível afirmar que, por outro lado, a distribuição da riqueza não seguiu a mesma marcha. Por exemplo, pelo Coeficinete de Gini, que visa a mensurar o nível de desigualdade na distribuição das riquezas de uma sociedade e utiliza uma variação que vai de 0 (sem desigualdade) a 1 (total desigualdade), o Chile marca 0,47, o que não o deixa em uma posição muito boa, entre os menos desiguais, nesse caso.

Para além disso, a Constituição chilena, apesar de todas as modificações, ainda apresenta diversas incongruências e marcas de injustiça social. O preceito do Estado mínimo, parte do modelo neoliberal que adota, exime o Estado de boa parte da prestação de uma gama de serviços à população, como os de previdência, saúde e até mesmo educação, isso em um país cujo com custo de vida é bastante alto. Outro exemplo bastante evidente é o do povo indígena mapuche, que correspondem a 20% da população do país, mas não possuem representação alguma na Constituição vigente.

O PARADOXO DA SOBERANIA LIMITADA

Observa-se, em processos sociais como o que ocorre no Chile atualmente, o fenômeno jurídico-político da manifestação do poder constituinte originário. É por meio dele que o povo chileno exercerá seu poder soberano e será capaz de trocar sua própria constituição e criar uma outra para por em seu lugar.

Mas o que isso tudo quer dizer? Por que haveria nesses acontecimentos algum tipo de paradoxo?

Para quem desconhece as teorias da constitucionalização, esses acontecimentos podem passar como naturais ou até mesmo serem ignorados. Afinal, embora não aconteçam o tempo todo, muitas pessoas certamente já viveram o suficiente para ter testemunhado pelo menos um ou mais desses processos. Portanto, alguns esclarecimentos são necessários.

Primeiramente, vale definir o que é o constitucionalismo e porque ele gera essa contradição. O constitucionalismo é, grosso modo, o processo pelo qual se visa delimitar as regras relativas ao poder, especialmente quanto ã divisão deste, e aos direitos fundamentais do povo ao qual se dirige; seu intuito primordial é estabelecer os fundamentos normativos de uma nova sociedade que por meio desse processo se constitui e delimita suas regras de funcionamento em um documento, a “constituição”. Teve início no último quartel do século XVIII, com as Revolução Americana e Francesa, que deram origem às duas primeiras constituições da história nesses moldes aqui apresentados.

Pelo constitucionalismo, pressupõe-se que existe um povo com poder soberano absoluto que se reúne como o fim de limitar seu próprio poder e depositá-lo na constituição, que passa a ser detentora desse poder soberano absoluto, porquanto porta as regras que todos devem obedecer. E é nesse ponto que o constitucionalismo começa a apresentar a noção paradoxal de que uma soberania popular necessita ser, ao mesmo tempo, absoluta,¬ porque é necessária como fundamento de validade da constituição ¬ e limitada ¬ porque deve respeitar a validade dessa constituição após cria-la (COSTA, 2006)

Desse entendimento, tem-se então um poder soberano ilimitado e limitado ao mesmo tempo. E, se o poder do povo passa a ser limitado em frente do poder constituído da constituição, que é ilimitado, então o povo não poderia ter a capacidade de se organizar e trocar sua própria constituição, como o farão em breve os chilenos, porquanto um poder limitado não seria capaz de depor um poder ilmitado. Mas então vamos tentar analisar um pouco do processo de como surgiu e se desenvolveu essa ideia que acabou por criar esse paradoxo.

Para isso, é fundamental entender o conceito de soberania, desenvolvido pioneiramente por Jean Bodin. Antes dele, imperava a lógica da constituição medieval, da pluralidade de poderes presentes na sociedade, equilibrados de modo que nenhum dos detentores de poder se impusesse aos outros de formal absoluta, o que era visto como tirania. Interessado em descobrir a própria natureza do poder, Bodin formulou que a soberania seria um poder absoluto – não porque é sem limites, mas porque não reconhece nenhum outro acima de si – e perpétuo – porque não é revogável (FIORAVANTI, 2001, p, 73-75).

Por isso, “a combinação de constituição soberana e povo soberano é paradoxal, na medida em que se reivindica para cada um desses elementos um atributo que desde Bodin é entendido como constitutivo da própria noção de soberania: a ausência de limites [que particulamete entendemos so sentido de não se reconhecer outros poderias capazes de limitarem-na] (1992: 8)”(In COSTA, 2011).

Os teóricos contratualistas desenvolvem outra construção teórica essencial para se entender o processo de constitucionalização, e o desenvolvimento da teoria da soberania e do poder constituinte. Todos eles partem da ideia de que teria havido um momento na história em que os seres humanos, cada um dono de si e livre, não viviam em sociedade, mas sim no estado de natureza, e, por uma ou outra razão, resolveram se unir por meio de um contrato social e formar a sociedade.

Para Hobbes, a segurança, a proteção à própria vida, é a motivação principal para o seres humanos terem resolvido se unir e fazer um contrato socia, pois eles são racionais e sabem que não podem viver o tempo natural da vida humana e um estado de guerra constante e, por medo desse estado, temendo por suas vidas, fazem um contrato onde todos, sem exceção, abrem mão de alguns direitos naturais para que possam conviver num estado mais harmônico e conservar suas vidas. (HOBBES, 2009. p. 48, 50)

Mas ele vai além, e aqui reside sua fundamentação teórica do poder soberano, que passa a ser do Estado (na figura metafórica do monstro mitológico Leviatã invocado). Como os homens são egoístas e receiam que, ao abrirem mão dos seus direitos o outro não o faça, não obedeça o contrato, necessitam de um soberano (Leviatã), que pode ser tanto um homem quanto uma assembleia de homens, ao qual todos transfeririam parte dos seus direitos naturais não alienáveis em troca de proteção. Somente o Leviatã poderia garantir a defesa do indivíduo tanto de estrangeiros quanto deles mesmos. (HOBBES, 2002. p. 62).

Nessa concepção hobbesiana de soberania, então, não haveria espaço algum para que os súditos do Leviatã, após fazerem o pacto e o invocarem, de alguma maneira viessem a destituí-lo, visto que poder do Leviatã passaria a ser absoluto. O único momento em que se poderia falar de algo próximo a um poder constituinte seria no da assinatura do contrato. Não há como encontrar aqui nem um esboço de exemplo explicativo do que se passa no Chile.

Para Rousseau, na verdade, é a vida do ser humano em sociedade e a instituição da propriedade privada que lhe faz desenvolver certos vícios, como a inveja, cobiça entre outros causados pela interação dos homens uns com os outros. Mas, ainda assim, defende a ideia da volonté général, como inspiração para a realização do Pacto Social, pelo qual todos os indivíduos concentrariam todo seu poder, suas vontades e interesses comuns, numa única força em favor de um contrato que garantisse a proteção (Rousseau, 1999. p. 19-20).

A soberania em Rousseau pertencente ao povo, que com o contrato pode delegá-la a um legislador que seja capaz de captar a volonté général da sociedade, que é um conceito um tanto difícil de definir, mas é basicamente uma composição de todas a vontades da sociedade, que emana da deliberação de todos; é uma conclusão sobre o que é melhor para o bem comum (ROUSSEAU, 1999, p. 37). O papel do legislador de Rousseau seria justamente o de captar essa volonté général e criar as leis, mas, se é que esse legislador existe, ele teria de apresentar qualidades excepcionais e muita virtù ¬ importante conceito maquiaveliano, que trata de qualidades pessoais importantes para poder lidar com as situações quer surgem, uma capacidade humana de controlar o seu redor, para lidar com a fortuna, uma situação favorável ou não e que não está sob seu controle, para manter um estado. (Maquiavel, 2001. 19-20; 24-25) – para ser capaz de captar a verdadeira volonté général de um povo ou nação.

As ideias de Rousseau serão posteriormente intensamente consideradas pelos constitucionalistas tanto estadunidenses como franceses, especialmente às relativas a soberania do povo, “a estrutura do império americano deve repousar sobre a base sólida do consentimento do povo” (HAMILTON, 2003).

Por fim, foi com o abade de Sieyès que se deu o passo mais importante em direção à compressão dos poderes soberanos do povo e o conceito, que ele desenvolveu, sobre o poder constituinte. Embora a França ainda não possuísse uma constituição no sentido estrito moderno à época, o abade buscava uma forma de encontrar uma justificação jurídica que possibilitasse a derrubada da constituição francesa, visto que a mesma não possuía nenhum mecanismo de que possibilitasse sua modificação (COSTA, 2011).

Assim desenvolveu o conceito de poder constituinte como argumento para justificar a mutação constitucional e derrubar a tese em voga, especialmente pela ótica conservadora, de que a maioria não pode alterar a constituição. Sieyès encontrou na soberania a justificativa direta para a mutação constitucional; assim como a soberania, o poder constituinte era de titularidade da nação e apresentava-se, na verdade, como uma faceta da própria soberannia, uma parte delevágel desta (2001).

Sieyès usou ainda o conceito jurídico da representação para elucidar quem e como teriam o poder de efetivamente modificar a constituição. Por meio da representação, o povo, enquanto detentores do poder soberano, poderia delegar o poder constituinte (do qual também é titular) a uma assembleia que fizesse uso dele tão somente para modificar a constituição. Tão logo essa missão de modificação fosse concluída, o poder constituinte a ela delegado se esgotaria (SIEYÈS, 2001).

Além disso, o poder constituinte não poderia ser delegado a um membro do governo, pois seria um absurdo, por possibilitar que esse membro alterasse sua própria composição – a do governo do qual faz parte, nesse caso. Nesse sentido pode se dizer que há uma forte congruência com a decisão tomada pelo povo chileno que excluiu os representantes de seu Congresso atual das deliberações da nova Constituinte do país.
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Porém, ainda permaneceram –mesmo após o desenvolvimento desse debate em torno do poder constituinte por autores mais recentes – algumas dúvidas, como quem teria o poder convocar a assembleia e sobre quais mecanismos deveria adotar. No fim, como diz alguns dos autores em Costa (2011), o conceito de poder constituinte é tão controverso e não encaixável no sistema jurídico de nenhum lugar, que não se pode fazer muito mais do que mecioná-lo, no caso jurídico (pois está fora desse sistema) ou observá-lo e analisá-lo como fenômeno manifesto.

A CONSTITUCIONALIZAÇÃO SIMBÓLICA E O CASO DO CHILE

Na concepção de Neves, os procedimentos decisórios, tanto os constituintes como os que se prestam a concretizar o sistema constitucional, “filtram as expectativas jurídico-normativas de comportamento” e as transformam em norma constitucionais vigentes. Trata-se de um verdadeiro subsistema normativo-jurídico que, ao mesmo tempo que possui autonomia relativa, está ligado, de modo permanente e variado, a outros sistemas sociais e, especialmente, com as outras dimensões do sistema jurídico (2006, p. 64).

A constituição no sentido moderno apresentado por Neves é, ao mesmo tempo, fator e produto da diferenciação funcional entre política e direito, vistos como subsistemas da sociedade. Nessa perspectiva, a constitucionalização é o processo por meio do qual se faz essa diferenciação. (2006, p. 65). Nesse modelo luhmaniano, a Constituição seria então definida como “acoplamento estrutural” entre política e direito, em que esses dois (sub)sistemas autônomos possuem um mecanismo de interpenetração e prestações recíprocas, por meio do qual um põe a disposição do outro sua complexidade – que é contingente e não pré-ordenada. É essa relação que “possibilita uma solução jurídica do problema de autorreferência do sistema político e, ao mesmo tempo, uma solução política do problema de autorreferência do sistema jurídico” (LUHMAN apud NEVES, 2006, p. 65)

Contudo, nos modelos de Constituição modernos, esse acoplamento estrutural não significa que haja uma relação de subordinação de um sistema ao outro – como ocorre nas sociedades pré-modernas e na adoção do modelo de Estado autocrático, casos em que há a subordinação do sistema jurídico ao político. Há aqui uma relação simultânea de independência e dependência entre dois sistemas autorrerenciais, na qual a Constiuição funciona com um elo e pode ser concebida como subsistema tanto de um como de outro sistema, do jurídico ou do político. (Ibid.)

O fenômeno da positivação do direito, tal qual o modelo proposto por Luhman, significa que o direito se caracteriza por ser posto – e por isso “positivo” – por decisões e por ser permanentemente alterável, bem como por ser um sistema autodeterminado e operacionalmente fechado (2006, p. 71). No entanto, cabe ressaltar, o direito é operacional e normativamente fechado, no sentido de criar suas próprias normas segundo suas próprias regras – a denominada “autopoiese” – mas é cognitivamente aberto, ou seja, está aberto as manifestações dos outros sistemas, inclusive pelo citado mecanismo de “prestação” com o sistema político, por meio dos quais adquire as informações necessárias para essa permanente alteração de si próprio.

Pode parecer, a princípio, que o caráter fechado da operacionalidade do direito depõe contra o argumento que defende a possibilidade de a Constituição gerar, por meio de um mecanismo constituído, outra Constituição e, consequentemente, autodestruir-se nesse processo. De fato, Luhman diz que uma legislação ilimitada teria como consequência a quebra do ciclo autopoiético do sistema do direito. E, para que isso não aconteça, existe nesse sistema uma forma interna de hierarquização, na qual o texto constitucional encontra-se no topo e serve de fundamento de validade para criação de outras normas e da própria autopoise do direito. É justamente essa hierarquização que se serve para o fechamento operacional e normativo do dirieto: “a Constituição fecha o sistema jurídico, enquanto o regula como um domínio no qual ela mesma reaparece. Ela constitui o sistema jurídico como sistema fechado através do reingresso no sistema" (NEVES,2006).

Nesse mesmo sentido, porém numa acepção mais ampla, é o que ressalta Costa (2011), em referência à própria origem da noção da supremacia hierárquica da constituição no constitucionalismo moderno: “Se todas as regras presentes no texto constitucional pudessem ser alteradas pelo poder legislativo, então não haveria constituição, dado que o legislativo seria soberano”.

No entanto, se o sistema cria a si mesmo e a própria constituição regula o sistema e depois reaparece no mesmo como fonte e critério de validade do próprio sistema, então não seria de todo ilógico supor que esse sistema pudesse conter mecanismo de autopoioese – ou mesmo que de alopoise – aberto pelos meios de prestações recíprocas, em casos em que a constituição já não tivesse mais força normativa, nem vigência social, por não se prestar mais a filtrar as expectativas jurídico-normativas de comportamento, e estivesse hipertrofiada de conteúdo “normativo" simbólico negativo. Como é visivelmente o caso da Constituição do Chile.

É forçoso admitir a dificuldade de se conceber uma constituição que exclui toda uma parcela da população como esses filtros de expectativas jurídico-normativas de comportamento, quando ela deliberadamente ignora a existência de grupos inteiros do seu povo. Conforme explicitamente ressalta Neves a esse respeito, a “inclusão de toda a população nos diversos sistemas sociais e a diferenciação funcional da sociedade pressupõem-se reciprocamente, na medida que a exclusão de amplos grupos sociais e a autorreferência operacional são incompatíveis” (2006, p. 77).

Para além disso, uma constituição de uma sociedade supercomplexa, como é a do Chile, que intencione a efetivamente exercer a função de “congruente generalização de expectativas normativas de comportamento”, só o poder fazer enquanto forem institucionalizados constitucionalmente os princípios da inclusão e da diferenciação, e, por conseguinte, os direitos fundamentais sociais (Estado de bem-estar) e os concernentes à liberade civil e à participação política (NEVES, 2006. p. 78), portanto é incompatível com uma constituição de estado esvaziado de funções sociais.

No caso particular de uma constituição elaborada por um regime ditatorial, contra violenta vontade manifesta de seu povo e em acordo com forças estrangeiras, sem dúvida encontra-se uma constitucionalizarão simbólica, associada à presença excessiva de disposições constitucionais pseudoprogramáticas. Das quais não resulta normatividade programáitco-finalísitca, antes o diploma constitucional funciona como um álibi para os políticos. Os dispositivos pesudoprogramáticos só constituem “letra morta” em um sentido exclusivamente normativo-jurídico, sendo relevantes na dimensão político ideologia do discurso constitucionalista-social (NEVES, 2006. p1. 116), o que não deixa de ser assim mesmo no caso de esse conteúdo programático estar sendo eficazmente aplicado, mas não cumprir o papel de fazer o filtro das expectativas de comportamento, porque não correspondem aos conteúdos almejados pelo próprio povo soberano.

CONCLUSÃO

A confusão que se faz com os conceitos tanto de soberania, especialmente em sua versão limitada, como de poder constituinte, tornam a solução para os paradoxos e contradições, que o uso deles apresentam, virtualmente impossível no plano jurídico. Isso é ainda mais verdade em se tratando de correntes teóricas do direito que se esforçam para isolá-lo de outros sistemas com os quais, no mundo fático, está interligado ou no mínimo tem uma relação de autorreferencia recíproca. Nesse sentido, a teoria do sistemas de Luhman e Neves se mostraram mais flexíveis.

Como o exposto por Costa (2011), as doutrinas liberais -até mesmo daqueles que se dizem democrátas – parecem se esforçar para esvaziar de sentido esses conceitos e retirar deles a aplicação prática e reduzir cada vez mais o poder soberano do povo.

Contudo no plano político e no mundo dos fenômenos – ainda que não se encontre explicações ou não se consiga organizar e estruturar adequadamente esses conceitos – os eventos continuam a existir e a se manifestarem, como bem demonstram os protestos no Chile e a convoação da assembelia constituinte pelo povo desse país.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

COSTA, Alexandre A. O poder constituinte e o paradoxo da soberania limitada. Teoria e Sociedade, n. 19, v. 1, 2011
FIORAVANTI, Maurizio. Constitución: De la Antigüedad a Nuestros Días. Madrid: Trotta, 2001
HAMILTON, MADSON e JAY. O Federalista. Belo Horizonte: Líder, 2003
HOBBES, Thomas. Leviatã: ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. São Paulo, Martin Claret, 2009..
LOEWENSTEIN, Karl. Teoría de la Constitución [Verfassungslehre]. Barcelona: Ariel [1975?]
MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Rio de Janeiro, Ediouro. 2001,
NEVES, Marcelo. A Constitucionalização Simbólica. São Paulo: WMFMartins Fontes, 2006.
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SYEYÉS, Emmanuel. A Constituinte Burguesa: Qu’est-ce que le Tiers État?. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001.

LINKS:

https://g1.globo.com/mundo/noticia/2019/10/20/entenda-a-onda-de-protestos-no-chile.ghtml Acesso em 02/04/2021

https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/10/26/chile-aprova-plebiscito-historico-por-que-e-tao-polemica-a-constituicao-que-78-dos-chilenos-decidiram-trocar.ghtml Acesso em 02/04/2021

https://www.politize.com.br/protestos-no-chile/ Acesso em 02/04/2021

https://www.br.undp.org/content/brazil/pt/home/idh0/rankings/idh-global.html Acesso em 02/04/2021