O momento constitucional chileno desafiando o paradoxo da soberania limitada
Autores: Ana Carolina Callai da Silva, Carlos Henrique da Silva Figueredo, Daniel Oliveira Simões, Diego Rodrigues de Morais, Emerson Fonseca Fraga, Rossana Jose da Silva e Tatianne Pereira da Silva.
A atual Constituição do Chile
A atual Constituição do Chile foi aprovada em 1980, ainda no contexto do regime ditatorial de Augusto Pinochet, marcado por sérias violações aos direitos humanos. Conforme previsto na Constituição, em 1988 foi convocado um referendo popular para decidir se Pinochet se manteria ou não no poder por mais 8 anos. Com a vitória no "não", iniciou-se a transição democrática no Chile, com a realização de eleições presidenciais e parlamentares em 1989 e com a permanência do ditador como senador vitalício. O fato de esta transição ter se dado de forma bastante negociada provavelmente contribuiu para uma maior estabilidade política e econômica, se comparada às instáveis transições da Argentina e do Brasil na mesma época, que trouxeram junto graves crises econômicas.
A Constituição de 1980 passou por modificações relevantes em 1989, quando permitiu maior pluralismo político, e em 2005, quando retirou alguns resquícios autoritários, como a nomeação de senadores vitalícios. A democracia chilena é uma das mais consolidadas e sua economia tem tido bons resultados nas últimas décadas em comparação aos demais países da América Latina. Então o que levou o povo a praticamente parar o país no final de 2019 em protestos reivindicando, entre outras coisas, uma nova Constituição?
Os principais fatores são a origem ilegítima e sua rigidez, que torna praticamente impossível reformas sociais importantes, como em questões de seguridade social, saúde e educação. Além disso, apesar do crescimento econômico, as desigualdades ainda são grandes no Chile.
Como resultado das manifestações populares, um referendo foi realizado em 25 de outubro de 2020, em que 78% dos chilenos votaram a favor de uma nova Constituição e 79% a favor de que a Assembleia Constituinte seja composta apenas por cidadãos, e não por convenção mista de cidadãos e parlamentares. As eleições para escolher os 155 constituintes ocorrerá em abril de 2021 e levará em conta paridade de gênero e cotas para indígenas e para portadores de necessidades especiais.
O Paradoxo da Soberania Limitada
Para compreendermos o crítico momento constitucional chileno, é salutar a compreensão de como o poder constituinte surgiu no pensamento moderno. Tendo como fundamento os ideais iluministas, a ideologia liberal e a doutrina do Contrato Social, a tese de que existiria um poder constituinte (em oposição ao poder constituído) capaz de alterar a constituição de uma nação foi criada em 1789 pelo abade Emmanuel Joseph Sieyès (1748-1836).
Assim pode ser resumido o paradoxo da soberania limitada: o povo é soberano e seu poder institui a Constituição, mas esta também é soberana e limita o poder do povo que a instituiu. O "poder constituinte" de Sieyès foi uma ideia revolucionária porque legitimava uma manifestação do povo contrária às leis instituídas. Seu panfleto "O que é o Terceiro Estado?", escrito no final de 1788, foi determinante para os revolucionários franceses no ano seguinte estabelecerem a Assembleia Nacional convencidos que estavam legitimados, por representarem a soberania do povo, para constituir novas bases para a Nação.
De acordo com Sieyès, a soberania nacional exercida com base em uma Constituição ficaria sempre limitada à soberania do povo, exercida pelo poder constituinte. Esse seria capaz de alterar a Constituição, que deveria sempre representar a soberana vontade do povo. O poder constituinte seria exercido por uma assembleia de representantes do povo com a tarefa de definir a nova ordem constitucional. Dessa forma, o paradoxo da soberania limitada foi solucionado, relativizando a soberania da Constituição em favor da soberania do povo.
No campo político, a soberania é do povo, pois seu poder não exige justificação. Mas para essa soberania poder agir no campo jurídico, ela é traduzida para uma Constituição, que se torna juridicamente soberana. Assim, o poder da Constituição não exige justificação jurídica. Mas a validade jurídica de uma norma, mesmo constitucional, nunca poderia ser absoluta, pois estaria sempre limitada pela sombra do poder constituinte. Para Kelsen, porém, a autoridade jurídica prevaleceria sobre a autoridade política, permanecendo o paradoxo. Schmitt soluciona novamente, notando que a força política prevalece e que "o problema da teoria liberal deriva da tentativa de substituir a soberania do povo pela soberania das leis, que não passa de uma ficção da linguagem jurídica".
Mais contemporaneamente, Bruce Ackerman vai de certa forma modular uma nova solução para o paradoxo da soberania limitada, interpretando que a história de uma democracia constitucional passa por momentos extraordinários de natureza constitucional, aos quais ele chama "momentos constitucionais", em que o povo constrói uma nova ordem constitucional, e por momentos de natureza política, em que a soberania da Constituição prevalece, como ordem constituída.
Conclusão
Os protestos iniciados em 2019 e a legitimação do processo constituinte do Chile, através do referendo popular, caracterizam claramente o período atual como um "momento constitucional". A consequência imediata será a fundação de uma nova Constituição que, em tese, possibilitará as mudanças sociais ansiadas pela população. Entretanto, é necessário observar que mesmo uma Constituição repleta de progressos sociais em seu texto, como a do Brasil de 1988, tem enfrentado dificuldades para a concretização das políticas públicas previstas na Constituição. Além disso, há uma tendência no novo constitucionalismo de se judicializar as questões políticas fundamentais, seja pelo genuíno comprometimento com noções progressistas de direito social, seja como forma de as elites preservarem sua hegemonia e bloquearem as tentativas de mudanças através das instituições democráticas representativas, conforme alerta Ran Hirschl, em seu livro Rumo à Juristocracia. O processo constituinte, portanto, é apenas um passo do enorme desafio que o povo chileno vai enfrentar para fazer valer sua soberania.
Referências
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