O inquisidor, o Estado e o livre-arbítrio
O grande inquisidor, capítulo da obra Os Irmãos Karamazov, do autor russo Fiódor Dostoiévski (1821 – 1881), traz diversas reflexões acerca da natureza humana, da angústia do ser humano frente à liberdade e ao livre-arbítrio e do poder político-religioso.
Trata-se de um poema, em forma de prosa, recitado por um dos irmãos, Ivan Karamazov, e descreve a volta de Jesus em plena Sevilha a época da grande Inquisição, no século XVI. Logo de início, os habitantes da cidade o reconhecem e começam a louvá-lo. Jesus realiza alguns milagres e, então, chama a atenção do inquisidor da cidade. Intrigado com a repentina reencarnação do Messias, o inquisidor manda prendê-lo, e assim é feito, tal era o nível de respeito e autoridade emanada pelo Cardeal.
Mais tarde, já à noite, o inquisidor visita a cela de Jesus e, então, inicia-se um dos mais fantásticos monólogos da literatura moderna. De plano, diz que Jesus não tem o direito de voltar daquela forma, tampouco acrescentar algo à Palavra que já foi escrita há mil e quinhentos anos. Em cima das três tentações de Cristo, o inquisidor extrai toda uma argumentação para provar que Jesus é o responsável por tudo que estava acontecendo com a humanidade naquele momento.
A primeira acusação, feita sobre a recusa de Jesus em transformar pedra em pão enquanto jejuava no deserto, é de que o livre arbítrio imposto por Jesus a partir deste momento é insuportável aos homens. Caso houvesse cedido à tentação, Cristo teria toda a humanidade aos seus pés, de forma incontestável. Afinal, para o inquisidor, toda a humanidade vive em busca de um único líder a quem se curvar, todos juntos, unidos pela mesma fé. Ao negar ceder à tentação, Jesus deu à humanidade a livre escolha entre segui-lo ou não. Essa liberdade de escolha é a causa de todas as angústias e guerras travadas pela humanidade desde o início dos séculos.
Uma vez que a humanidade não consegue lidar com a vastidão da liberdade deixada por Jesus, alguns homens carregam o fardo dessa liberdade, privando-a de todos os demais, deliberadamente, em busca de um bem maior. O inquisidor se define como parte deste grupo. Para este, “não há para o homem que ficou livre cuidado mais constante e mais doloroso do que o de procurar um ser diante do qual se incline”. Assim, o inquisidor, representando a Igreja Romana, remove a liberdade dos seus fiéis para que eles possam, enfim, serem felizes sem o tormento constante de terem que escolher entre certo e errado, bem e mal, uma vez que tais questões já foram pré-determinadas pela igreja.
Aqui, cabe uma reflexão acerca do papel do Estado na vida dos seus cidadãos. Afinal, por que a população segue as leis impostas, que propositalmente removem suas liberdades? Será que, assim como o grande inquisidor sugere, estamos propensos a abrir mão de nossa liberdade em prol de alguma paz de espírito? E caso sim, até que ponto somos verdadeiramente livres?
Diversos pensadores da sociologia tentaram responder de onde vem a legitimidade do Estado. Para Emile Durkhein, a legitimidade do Estado advém da própria vontade do povo que, em nome do convívio coletivo, cedem sua autoridade para organizações e instituições, que passam a ter poder coercitivo sobre esses mesmos indivíduos. A coercitividade estatal depende, portanto, do reconhecimento da importância dessas instituições pelos indivíduos a elas submetidas (STEINER, 2016).
Já para Karl Marx, o Estado é uma construção histórica que se sustenta sobre relações de produção inerentes à existência da vida social. Assim, o surgimento do Estado é uma resposta à necessidade de dominação de uma classe social sobre a outra, pois remete a conflitos relacionados aos modos de produção, à exploração econômica de uma classe dominante. Logo, o Estado é uma imposição, uma superestrutura de dominação que serve à classe exploradora.
Para Max Weber, o Estado é a resposta a uma necessidade de racionalização crescente. Assim, o Estado teria, de forma justificada, o monopólio legítimo de uso da violência dentro de um determinado território. Por ser oriundo de uma racionalização da vida em sociedade, o Estado seria também a expressão do ordenamento social.
Apesar das explicações e teorias acerca da origem e legitimidade do Estado, os cientistas sociais parecem não se aprofundar nos seus fundamentos filosóficos. Afinal, o ser humano se sente de fato mais confortável ao abrir mão de sua liberdade? Afinal, o que o conto do Grande Inquisidor deixa óbvio é que o inquisidor é um autoritário, que não permite aos fiéis conhecer o verdadeiro amor de Cristo. Sob o pretexto de proteger a humanidade, o inquisidor engana os seguidores da igreja, levando-os a crer que estão seguindo um caminho santo quando, na verdade, sabe que não terão salvação alguma, mas terão vivido uma vida mais tranquila.
Se o inquisidor é um autoritário, que não permite a liberdade aos seus fiéis, o Estado Democrático seria um sistema mais justo para com seu povo? Afinal, na democracia o povo teria livre-arbítrio para decidir, diretamente ou por representantes eleitos, os rumos da sociedade.
Dessa forma, diversas críticas podem ser feitas também ao modelo democrático. Dentre elas, a de que a democracia seria apenas um modelo ilusório de controle do governo pelo povo, quando na verdade serviria para mascarar e legitimar a realidade da dominação pelas elites. Gaetano Mosca (1961) argumenta que a oligarquia da elite é a lei inflexível da natureza humana, e que as instituições democráticas fariam tão somente o papel de mudar o exercício do poder de opressão para manipulação.
Sob essa perspectiva, bastante pessimista, não restaria a opção de livre-arbítrio aos homens comuns, visto que sempre haverá um “inquisidor” para tolher-lhe a liberdade. A questão final seria descobrir se, de fato, a humanidade é mais feliz deixando-se ser guiada por outros mais “iluminados”, “depositários do segredo”, como definidos pelo inquisidor de Ivan Karamazov, ou se seria mais realizada exercendo plenamente seu livre-arbítrio. Resta, ainda, imaginar como seria uma sociedade organizada plenamente no livre-arbítrio, isso se tal sociedade seria possível algum dia. São questões que, provavelmente, os filósofos do futuro ainda se debruçarão, uma vez que nem todo o avanço tecnológico será capaz de resolver de vez as angústias do ser humano.
Referências bibliográficas:
MOSCA, Gaetano. On the Ruling Class. New York : Free Press, 1961.
STEINER, Pilippe. A sociologia de Durkheim. Petrópolis : Vozes, 2016.
DOSTOIVSKI, Fiodor. O grande inquisidor. Em: Os irmãos Karamazov. São Paulo: Editora 34, 2008.