O direito é um conjunto de normas?
A busca pela definição de um conceito único sobre o que é o direito é um tema recorrente nos círculos acadêmicos nacionais e internacionais. Apesar dos diversos debates tocados nas principais Faculdade de Direito do mundo, apenas conceitos provisórios tendem a dar resposta ao questionamento. É o que sustenta Herbert L. A. Hart, em seu livro “O conceito de direito”. Para o autor, as afirmações e negações que imperam como dogmas sobre a natureza do direito:
não foram contudo feitas por visionários ou por filósofos profissionalmente interessados em duvidar das expressões mais simples do senso comum. São o resultado de prolongada reflexão sobre o direito, feita por homens que foram, antes de mais, juristas, ocupados profissionalmente, quer com o ensino do direito, quer com a sua prática, em alguns casos ocupando-se com a aplicação do direito como juízes. (HART, 2007, p. 6)
De acordo com Tércio Sampaio Ferraz Junior, o direito, como conjunto de normas, adquire, a partir do avanço do constitucionalismo e do legalismo, um acabamento racional e formal de ação, legitimando como conteúdo jurídico aquilo presente na constituição ou eventualmente estabelecido por lei. Nesse sentido, o autor defende que:
o conhecimento dogmático-analítico distancia-se, por abstração, da realidade, passando a ver o direito – fenômeno social – como conjunto de normas, elas próprias concebidas como prescrições gerais e abstratas que, em seu conjunto, devem manifestar um sistema congruente e racional. A norma jurídica, da qual fala o jurista, é, portanto, verdadeira construção teórica da própria ciência jurídica, em que os diferentes mecanismos estabilizadores manifestam, idealmente, uma congruência consistente. É isso que lhe permite fazer suas classificações, suas distinções, suas sistematizações. Contudo, para isso, ele precisa de uma linguagem própria, com conceitos operacionais que lhe dêem condições de realizar o recorte teórico da realidade. (FERRAZ, 2018, p. 123)
Para o autor, a constituição do direito como conjunto de normas exige elementos correlatos para sua constituição, quais sejam, os agentes, a relação entre eles e o conteúdo das mensagens.
Alexandre Araújo Costa, por sua vez, a partir da concepção de Maynez, descreve as normas interessantes ao direito como aquelas que ora impõe deveres, ora conferem direitos aos indivíduos. (COSTA, 2001, p. 28)
Adiante, o autor sustenta que toda sociedade é organizada por normas e o direito, como resultado da organização social, desempenha função de extrema importância, permitindo “prever com um certo grau de certeza o comportamento das outras pessoas e adequar nosso curso de ação a essas previsões.”. (COSTA, 2001, p. 40)
A partir de tais concepções é possível inferir que sim, o direito é um conjunto de normas, mas não somente. Nas palavras do autor:
essa função estabilizadora não é exclusiva do direito. Em todo grupo social, existem diversas instituições que contribuem para a coesão social e o ordenamento da comunidade: religião, moral, tradições, todos esses elementos criam para cada pessoa um papel social definido e exigem delas comportamentos adequados. (COSTA, 2001, p. 40)
Mais do que um conjunto de normas, as críticas da sociologia, da filosofia e da linguística indicam que o direito é formado por percepções pessoais de quem julga sobre o conceito do justo, por argumentos de autoridade, bem como por tentativas de demonstração de erudição cultural.
Na obra “Como os Juízes decidem casos difíceis do direito”, Noel Struchiner e Marcelo Santini Brando ao tratar do conflito moral dos juízes na resolução de casos difíceis, indicam que os operadores do direito devem ser céticos no que se refere à suposta neutralidade ou imunidade dos julgadores aos vieses morais. Segundo os autores:
Juízes possuem intuições fortes em relação a esses assuntos como qualquer outra pessoa e suas intuições também são automáticas e alcançadas por meio de um processo que eles dificilmente são capazes de reconstruir, já que acontecem fora da margem de consciência. Mais do que isso, vimos como essas intuições são suscetíveis a serem moldadas por fatores estranhos, como reações afetivas não confiáveis (ex: nojo), efeitos de ordem, o momento do dia em que a decisão é tomada, etc. (STRUCHINER, NOEL, 2014, p. 211)
Nesse mesmo sentido, Claudia Roesler, a partir do estudo das decisões proferidas pelos tribunais brasileiros, aponta que o direito, mais do que um conjunto de normas aplicadas ao caso concreto, é repleto de “floreios retóricos e arroubos poéticos”, ineficazes de esclareces aos jurisdicionados a resposta clara para a controvérsia do momento. Logo:
Se acreditarmos no que dizem muitas das decisões dos nossos tribunais eles estão, nada mais, nada menos, do que aplicando o bom standard da teoria do Direito pós-positivista, esgrimindo com suposta maestria textos de Dworkin e a célebre fórmula da ponderação de Alexy para garantir direitos e ampliar as condições de proteção da cidadania. Atuam a partir de uma condição de legitimação argumentativa para afastar a posição do legislador infraconstitucional, por exemplo, invocando a capacidade racional de um tribunal para funcionar como um mecanismo de proteção contra majoritário ou a noção de representação argumentativa. Aparentemente, portanto, esses autores e suas concepções do Direito estão por detrás da forma como pensam e argumentam nossos julgadores. (ROESLER, 2016, p. 90)
Resta evidente, portanto, que o conjunto de normas que compõe o direito é apenas uma das facetas desse fenômeno social. Repleto de imposições morais, inerentes a quem julga, arroubos doutrinários para fundamentar decisões e estratégias argumentativas visando o convencimento, o direito se mostra como um sistema amplo, capaz de abarcar as normas, mas não somente.
Em virtude disso, surge o Direito Achado na Rua (DANR) como resposta ao formalismo e positivismo que reduzem o direito à perspectiva normativa. Para o movimento, existe uma necessidade de se questionar o Estado como fonte única de juridicidade.
O pluralismo jurídico popular, defendido pelos idealizadores do projeto, desponta como a possibilidade de ampliar o conceito de direito, retirando-o da mera esfera normativa, repleta de falhas e inconsistências, e o reconstruindo a partir da dimensão pluralista, popular e transformadora, na medida que se torna capaz de legitimar os diferentes tipos de saberes e conhecimentos. (SOUSA JUNIOR, 2015, p. 107)
Referências Bibliográficas
COSTA, A. A. Introdução ao Direito: uma perspectiva zetética das ciências jurídicas. Porto Alegre: Fabris, 2001.
FERRAZ JUNIOR, T. S. Introdução ao estudo do direito: técnica, decisão, dominação. São Paulo: Atlas, 2018.
HART, H. L.A. O Conceito de Direito. Trad. A. Ribeiro Mendes, 5. Ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007.
ROESLER, C. R. Entre o paroxismo de razões e a razão nenhuma: paradoxos de uma prática jurídica. Direito.UnB - Revista de Direito da Universidade de Brasília, v. 2, n. 1, p. 79-95, 1 jan. 2016.
SOUSA JUNIOR, J. G. (Org.). O Direito Achado na Rua: concepção e prática. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2015.
STRUCHINER, NOEL; B, M. Como os juízes decidem os casos difíceis do direito?. Em: Struchiner, Noel; Tavares, Rodrigo (org.). Novas fronteiras da teoria do direito. Rio de Janeiro: PoD; PUC-Rio, 2014.