O direito é um conjunto de normas?

Discentes: Guilherme Aranha, Izabela Lemes, Lucas Orsi, Sofia Vergara, Tiago Reis, Walter Cunha.

Para responder à pergunta é interessante retomar as lições do emblemático “O caso dos exploradores de cavernas”, de Lon L. Fuller (1976).

O livro relata um caso hipotético no qual cinco exploradores adentram uma caverna calcária quando, já distantes de sua única entrada, ocorre um deslizamento, aprisionando-os. Devido à falta de alimento, Roger Whetmore, um dos espeleólogos, propõe que um dos integrantes do grupo seja morto - de morte matada e não de morte morrida (MELO NETO, 2010) - e sirva de alimento aos demais.

O processo de escolha seria por meio de lançamento de dados. Aceita a proposta e dados lançados, Roger Whetmore foi o azarado que acabou morto pelos demais, mesmo que antes de realizar sua jogada tenha desistido do acordo. Os quatro exploradores restantes são acusados de homicídio com base na lei “quem quer que intencionalmente prive outrem da vida será punido com a morte” (FULLER, 1976, p. 8). Os réus são condenados à forca na Primeira Instância, porém os integrantes do Tribunal, e o próprio juiz, enviam petições ao Executivo para lhes dar uma alternativa de pena a seis meses de reclusão. Tendo recorrido da decisão, o caso chega à Suprema Corte, composta por cinco juízes. Interessa para nós os votos dos juízes Keen e Handy.

Keen é retratado como estritamente positivista, entendendo o juiz como mera boca da lei, e condena os réus. Handy, por outro lado, é um realista e propõe uma adequação extrema do direito à sociedade, absolvendo os exploradores. Com cada qual entendendo o direito de uma maneira, no mesmo sentido, a resposta à pergunta - o direito é um conjunto de normas? - parece muito depender de qual conceito e acepção de norma se adota. Pode-se, por exemplo, entender norma como uma orientação, como uma expectativa de comportamento, em abstrato - admitindo dimensões sentimentais, morais, psicológicas, temporais, espaciais, sociológicas, filosóficas, etc. -, como também entendê-la como algo essencialmente jurídico.

Essa é a dicotomia clássica entre formalismo e realismo.

O formalismo jurídico - que tem como exemplos a Escola da Exegese e a Jurisprudência dos Conceitos - procurava valorizar a dimensão interna do direito - a consistência jurídica - com base na rescisão conceitual. Os conceitos eram articulados de maneira precisa e científica, com o objetivo de garantir a segurança jurídica.

A corrente foi criticada e revista por Hans Kelsen (1998) em sua teoria pura. O autor alemão defendia que os legisladores não podem prever todos os casos e, por isso, os juízes devem ter certo grau de liberdade, consubstanciado na figura de uma moldura. Não haveria, então, lacunas no direito, haja vista a existência de outras “fontes” de direito - analogias, costumes (se previsto no ordenamento jurídico), princípios gerais, equidade - para resolver casos concretos. Para tanto, o juiz dispõe de uma moldura objetiva que oferece um leque de opções que ele pode escolher livremente, de maneira subjetiva. Essa situação expressa um formalismo moderado, pois a consistência interna começa a ser relativizada e o direito encontra uma abertura para a adequação social.

A crítica de Kelsen pode ser entendida, no sentido de que o formalismo faz com que o direito se feche em si mesmo e perca a capacidade de abertura cognitiva ao ambiente. O ordenamento jurídico não pode desconsiderar os sistemas que estão à sua volta, pois por eles é condicionado. Um sistema totalmente fechado às demandas sociais apresentaria um alto grau de consistência e de segurança jurídica, porém com poucas possibilidades práticas.

Na mesma linha, é um modelo circular não estático, uma vez que os juízes e os Tribunais se encontrariam no centro do ordenamento jurídico e utilizariam fontes formais do direito como as leis, os contratos, a dogmática jurídica e os precedentes jurisprudenciais para fundamentar suas decisões. Todavia, ao mesmo tempo em que esses elementos são utilizados, são modificados conforme seu uso.

É justamente esse formalismo exacerbado que é questionado pelo realismo.

A ideia de que cada decisão judicial é atividade criadora de Direito, não apenas aplicação de norma pronta, teve diversos adeptos na Europa no final do século XIX. O chamado “Movimento do Direito Livre”, por exemplo, seguia o princípio de que haveria pluralidade de significados para a aplicação de determinado texto de lei, cabendo ao juiz ponderar o que acreditava ser a mais justa, em verdadeira livre investigação do direito. O magistrado não teria limites no momento de decidir litígios. (LARENZ, 1997, p. 78).

De modo semelhante agia o bom juiz Magnaud. Magistrado do Tribunal de primeira instância de Château-Thierry, na França, no qual atuou de 1889 a 1904, passou a ser conhecido como o bom juiz por amparar mulheres e menores, por atacar privilégios, por proteger plebeus, ao interpretar a lei de acordo com classe, mentalidade religiosa ou política das partes. Em suas decisões, o bom juiz Magnaud “não jogava com a Hermenêutica, em que nem falava sequer. Tomava atitudes de tribuno; usava de linguagem de orador ou panfletário; empregava apenas argumentos humanos sociais, e concluía do alto, dando razão a este ou àquele sem se preocupar com os textos”. (MAXIMILIANO, 2006, p. 68). Tratava-se de verdadeira jurisprudência sentimental.

Daí se conclui que o realismo jurídico ignora que a complexidade da sociedade faz com que o que seja adequado para um sistema, não seja para outro, visto que existem divergências de expectativas mesmo na mesma sociedade. Assim, o juiz não consegue resolver as demandas de uma maneira ampla, sempre havendo grupos satisfeitos e grupos insatisfeitos. O que é adequado socialmente, mas não tem precedente legal, torna-se fluido. É preciso, portanto, de critérios jurídicos. Dessa forma, um direito muito adequado e pouco consistente dilui as expectativas normativas da sociedade e dificulta a percepção da existência desses critérios. O direito perde a pretensão de generalização congruente.

Por um lado, à consciência das falhas, limitações e da abertura do Direito, a consciência de que juízes às vezes fazem escolhas, que podem manipular regras e precedentes jurisprudenciais, que às vezes são influenciados por visões políticas e morais e por seus vieses pessoais (aspecto cético). Por outro lado, um ceticismo que compreende que regras jurídicas funcionam apesar disso; que juízes cumprem e aplicam o Direito; que há fatores práticos, sociais e institucionais que constrangem os juízes; e que juízes proferem decisões geralmente previsíveis, coerentes com o Direito (aspecto guiado pelas regras) (TAMANAHA, 2010, p. 6 apud HORTA; COSTA, 2017, p. 289).

Enquanto o formalismo excessivo diminui a adequação social e cria uma dificuldade para o direito responder aos estímulos de seu ambiente, o excesso de adequação a esse ambiente faz com que o direito perca seu critério de generalidade e de justiça. Essa dicotomia apresenta limites, pois é difícil pensar em um direito baseado apenas na autorreferência - consciência jurídica - ou apenas na heterorreferência - adequação social. O direito é um sistema da sociedade e, portanto, nela está imerso. É preciso manter sua autonomia aliada a respostas às demandas sociais.

O sistema jurídico precisa de ser suficientemente diferenciado para garantir sua autonomia operacional e suficientemente aberto para preservar sua capacidade cognitiva de adequação social. Quando essa diferenciação não é suficiente, existe uma situação de corrupção sistêmica, porque outros sistemas sociais vão além do condicionamento do direito e chegam a determiná-lo, prejudicando sua consistência jurídica.

É possível solucionar esse paradoxo? Entendemos que não.

O dogma de que a justiça é a fórmula de contingência do sistema jurídico é necessário e produz como resultado a evolução do direito, no sentido de que a justiça seria uma motivação e não a resposta. Além disso a solução definitiva do paradoxo implicaria a utopia da abolição do direito. Isso porque o conflito entre adequação social do direito e consistência jurídica é uma busca por justiça. Se todos os conflitos sociais fossem resolvidos de forma justa, não haveria por que existir direito. Se todos estivessem satisfeitos, se não houvesse conflitos interpessoais ou divergências de expectativas normativas, não haveria direito.

Ambos os modelos possuem falhas, falhas essas que, como visto, são na verdade benéficas ao próprio direito. O que fazer então?

Ricardo de Lins e Horta e Alexandre Araújo Costa (2017, p. 290) evidenciam como se dá a interação e flexibilização desses dois modelos antagônicos no seguinte trecho:

o juiz precisa primeiro convencer a si mesmo de que a escolha que intuiu faz sentido. Para tanto, reúne argumentos que articulem juízos de valor que permitem defender sua escolha como jurídica, justa ou razoável. Por sua vez, ao reunir essas razões, o processo de descoberta é enriquecido, na medida em que a resposta inicialmente contemplada pode ser reforçada – ou abandonada, caso não seja suficientemente convincente. Assim, mesmo que um insight seja potencialmente irracional, ou enviesado, o processo de descoberta inclui um processo consciente de avaliação de razões e argumentos que o retroalimenta.

Desse raciocínio também parecem partir Struchiner e Brando (2014) ao propor um “giro questionador”: deixa-se de perguntar como os juízes devem decidir e passa-se a indagar como os juízes decidem. Passa-se a entender as normas como parte da linguagem, que não é puramente científica. Esse é o motivo pelo qual, inevitavelmente, as normas padecerão da imprecisão inerente da linguagem. Não é possível tentar empregar a ideia de verdade universal e absoluta a uma linguagem que é relativa e interpretada de forma diferente por cada leitor. Tampouco é possível aplicar métodos de ciência a fim de mitigar ou de extinguir o caráter vago da linguagem, tentando empregá-la um ar de neutralidade.

Surge então o que se denominou de giro linguístico. Como explicam Guilherme Scotti e Menelick de Carvalho Netto (2014), o giro linguístico, ou giro hermenêutico/pragmático, encara todos os problemas relativos ao conhecimento como problemas de linguagem, dando para a filosofia um lugar empírico. Ao discorrer sobre nossas capacidades linguísticas, nossos modos de dizer, nossas estruturas argumentativas, os autores entendem que é possível realizar uma pesquisa indutiva capaz de esclarecer as estruturas lógicas, por meio das quais a linguagem se processa. Nesse sentido, todo o conhecimento humano seria uma explicação linguística e, portanto, os limites do nosso conhecimento seriam os limites da nossa linguagem.

É então a partir da teoria do giro linguístico que Carvalho Netto e Scotti (2014) entendem que a construção normativa passa a operar a partir da postura de um participante interno que tem como foco central a comunidade de pessoas que se reconhecem reciprocamente como livres e iguais na concretude de suas vivências cotidianas, considerada sincrônica e diacronicamente, isto é, o que ela mesma busca constituir.

Nesse sentido, considerar a questão proposta como uma pergunta de tudo ou nada, de sim ou não, parece um erro, uma armadilha. Direito é ou não é um conjunto de normas? A resposta é: também. Direito também é norma, assim como é linguagem, técnica, decisão, dominação, persuasão. Reduzi-lo apenas a uma de suas dimensões, além de insensato, é um equívoco.

Referências

CARVALHO NETTO, Menelick de; SCOTTI, Guilherme. Os direitos fundamentais e a (in)certeza do direito. Fórum; 1ª edição, 2014.

FULLER, Lon L. O caso dos exploradores de cavernas. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1976.

HORTA, Ricardo de Lins e; COSTA, Alexandre Araújo. Das Teorias da interpretação à Teoria da Decisão: por uma perspectiva realista acerca das influências e constrangimentos sobre a atividade judicial. In.: Revista Opinião Jurídica, ano 15, n. 20, jan/jun 2017. Fortaleza: Unichristus, 2017.

KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997.

MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2006.

MELO NETO, João Cabral de. Morte e vida severina: e outros poemas. Rio de Janeiro: Objetiva, 2010.

STRUCHINER, Noel; BRANDO, Marcelo Santini. Como os juízes decidem os casos difíceis do direito?. In.: STRUCHINER, Noel; TAVARES, Rodrigo de Souza (Org.). Novas fronteiras da teoria do direito: da filosofia moral à psicologia experimental. Rio de Janeiro: PoD editora; FEPERJ; Editora, PUC Rio, 2014.