O Direito é a interpretação da norma, e não a norma em si
Autores: Jezebel de Melo Eiras, Nikolly Milani Simões Silva e Roberto Augusto Brito Alves.
Em seu livro “Teoria Pura do Direito” (1999), Hans Kelsen apontou que a ciência jurídica, em seu modelo tradicional, mostra-se evidentemente distante de um conceito “puro”. Kelsen explica que a confusão feita entre o Direito e as demais ciências que de alguma forma se conectam ao Direito leva a Teoria Pura a buscar evitar que haja um sincretismo metodológico, como descrito pelo autor, que deixe embaralhe os limites da ciência jurídica. (KELSEN, 1999, p. 1)
Os elementos que constituem os fatos jurídicos (tais como as normas e atos relacionados ao Direito) são os atos que ocorrem no plano material e temporal e seu significado jurídico sob a ótica do Direito (KELSEN, 1999, p. 2). As normas funcionam sempre a partir da interpretação que delas se faz. Assim, nas palavras de Kelsen, “o conteúdo de um acontecer fático coincide com o conteúdo de uma norma que consideramos válida” (KELSEN, 1999, p. 3).
O Direito nada mais é que um conjunto de normas cujo objetivo é a regulação do comportamento do homem quando em convívio em sociedade. A ciência jurídica, assim, conecta-se às normas e a elas designa seu caráter de ato jurídico ou antijurídico (KELSEN, 1999, p. 4).
"Com a palavra 'vigência' designamos a existência específica de uma norma. Quando descrevemos o sentido ou o significado de um ato normativo dizemos que, com o ato em questão, uma qualquer conduta humana é preceituada, ordenada, prescrita, exigida, proibida; ou então consentida, permitida ou facultada. Se, como acima propusemos, empregarmos a palavra 'dever-ser' num sentido que abranja todas estas significações, podemos exprimir a vigência (validade) de uma norma dizendo que certa coisa deve ou não deve ser, deve ou não ser feita." (KELSEN, 1999, P. 7)
Paul Silbert (1986), quando diz que “a norma, portanto, não é texto, mas é significado” reitera o que foi descrito por Kelsen em Teoria Pura do Direito quanto à necessidade de interpretação dos dispositivos adotados no sistema jurídico. O Direito não é constituído pelo conjunto normativo em si, mas sim por suas leituras e aplicações.
Na fortemente presente discussão sobre o enquadramento do Direito como uma ciência, Tércio Sampaio Ferraz Junior (2006) esclarece que é possível visualizar essa ciência como sendo a sistematização de regras jurídicas, como uma atuação voltada para a interpretação de normas ou como um estudo acerca de decisões.
A despeito da vertente que se busque seguir, é incontestável que, para a sua aplicação, a norma deve ser interpretada por aquele que a aplica, que é invariavelmente uma pessoa física. Assim, a concepção de que o Direito não se resume a uma série de dispositivos elaborados em conjunto por pessoas designadas para tal e definidos como guias do comportamento em sociedade é inevitavelmente adotada, de uma forma ou de outra.
Kelsen aponta que as normas fundamentais são a base para a validade de todas as normas que pertencem a uma mesma ordem. Para ser considerada vigente, uma norma não depende apenas de sua existência, mas também de sua validade e efetividade. A validade de uma norma depende, assim, da conduta do homem que a aplica.
“Dizer que uma norma vale (é vigente) traduz algo diferente do que se diz quando se afirma que ela é efetivamente aplicada e respeitada, se bem que entre vigência e eficácia possa existir uma certa conexão. Uma norma jurídica é considerada como objetivamente válida apenas quando a conduta humana que ela regula lhe corresponde efetivamente, pelo menos numa certa medida. Uma norma que nunca e em parte alguma é aplicada e respeitada, isto é, uma norma que - como costuma dizer-se - não é eficaz em uma certa medida, não será considerada como norma válida (vigente).” (KELSEN, 1999, P. 19)
Ademais, apesar de Kelsen tratar muito do caráter linguístico-interpretativo do direito, a sua análise também leva em consideração as relações inter-humanas advindas das normas jurídicas, trazendo assim, um significado muito subjetivo que foge da esfera meramente legalista. Para Kelsen, era essencial observar determinadas normas jurídicas diante da conduta humana, somente assim seria possível identificar diferentes sistemas jurídicos, o que reforça a ideia do significado da norma.
A ciência jurídica tão explanada por Kelsen, tem o papel de descrever as normas jurídicas produzidas através de atos de conduta humana, Além disso, na aplicação dessas normas também se faz necessária a análise dos atos de conduta.
Desta forma, fica evidente esse caráter subjetivo que Kelsen quis trazer em sua obra, além de destacar que para aplicação das normas jurídicas é necessário conhecimento, e esse conhecimento somente confere poder à algumas pessoas, não possibilitando o verdadeiro saber jurídico. Daí a importância de legisladores que não se limitem ao texto e busquem pela produção jurídica, que é justamente o objeto e principal insumo da ciência jurídica.
As normas positivas de Hans Kelsen levam em consideração o espaço, o tempo e os atos humanos, e tais normas acabam se tornando objeto da ciência real, que nos dias atuais pode ser exemplificada pela jurisprudência, que é um grande instrumento de atualização e de como o direito não se resume ao texto da normas, mas é um grande exercício de adaptação e interpretação.
Uma ordem jurídica precisa considerar os aspectos subjetivos de cada indivíduo, e considerando isso, torna-se praticamente impossível uma norma que desconsidere isso e se resuma em um mero texto. Kelsen considera isso em sua obra, e ressalta que apesar das individualidades presentes na sociedade, todos os membros da comunidade estão submetidos à mesma ordem jurídica. Para aplicação das normas jurídicas, é necessário que o legislador ou o juiz interprete a norma da maneira mais adequada de acordo com as peculiaridades de cada caso:
"Isto surge com especial clareza no caso de uma ordem jurídica - ou antes, da comunidade jurídica por ela constituída - a que podem pertencer indivíduos de várias línguas, raças, religiões, concepções do mundo e, particularmente, a que podem pertencer também indivíduos e grupos com interesses diferentes e antagônicos. Todos eles formam uma comunidade jurídica na medida em que estão submetidos a uma e mesma ordem jurídica, isto é, na medida em que a sua conduta recíproca é regulada através de uma e a mesma ordem jurídica." (KELSEN, 1999, p.61).
Desta forma, fica evidente que apesar de Kelsen ter buscado em sua obra um conceito formal de validade, que servisse como critério para a identificação objetiva de um sistema jurídico, em momento algum o interesse de Kelsen foi em reduzir as normas ao texto jurídico. Muito pelo contrário, a interpretação do texto, e a análise de possíveis sub-normas foi muito incentivado por Kelsen que se voltou para uma análise geral e global do direito.
Ao contrário do exposto por Paul Silbert, a redução das normas jurídicas era resumida na tentativa de reduzir o todo o direito social ao direito do Estado e todo o direito estatal à lei, o que não é retratado em Teoria Pura do Direito. Esse período se iniciou principalmente com a criação dos primeiros códigos, que posteriormente foram se atualizando e passando a se adequar a realidade de cada ordenamento jurídico.
FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. A ciência do direito. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2006.
GOMES, Milton Carvalho. O Direito entre fatos e normas: O distanciamento entre a verdade dos fatos e a verdade construída no processo judicial brasileiro. Disponível em: <https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/496608/000966862.pdf?sequence=1&isAllowed=y>.
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução: João Baptista Machado. 6ª Ed. 1999. São Paulo: Martins Fontes. Disponível em: <https://portalconservador.com/livros/Hans-Kelsen-Teoria-Pura-do-Direito.pdf>.
SILBERT, Paul. Trialetic theory of morals. Ontario: Highlander, 1986.
Costa, Alexandre. Hermenêutica Jurídica. Arcos, 2020.