Miguel Reale
1. Miguel Reale (06/11/1910 – 14/04/2006)
Miguel Reale é o jusfilósofo brasileiro com maior reconhecimento no exterior. Ele foi filósofo, jurista, político, professor universitário e poeta, tendo nascido no Estado de São Paulo em 19101. Foi Secretário da Justiça de seu estado natal e reitor da Universidade de São Paulo (USP), onde lecionava a matéria de Filosofia do Direito2.
Teve longa atuação na advocacia e na academia, tendo como principal referência a elaboração da Teoria Tridimensional do Direito, conforme veremos adiante, que objetiva a integração da norma jurídica ao fato social e aos valores culturais3.
Dentre algumas atividades notórias de Reale, pode-se citar: (i) a participação na Ação Integralista Brasileira4; (ii) a redação da Emenda Constitucional nº 15; (iii)a supervisão da comissão elaboradora do Código Civil Brasileiro de 20026; (iv) a participação da Academia Brasileira de Letras (ABL)7; e (v) a cofundação da Academia Brasileira de Filosofia8.
Recebeu diversos títulos, dentre eles o de Doutor Honoris Causa das Universidades de Lisboa, de Coimbra, de Gênova, da Universidade Federal de Pernambuco, da Universidade Católica de Campinas, da Universidade Federal de Goiás e da Universidade do Chile9.
Participou de diversos movimentos políticos, sociais, culturais e filosóficos. Reale não temia tomar posições, mesmo que polêmicas, demonstrando sua singularidade9. Além disso, é pai do também jurista Miguel Reale Júnior, ex-ministro no governo do presidente Fernando Henrique Cardoso10. Veio a falecer em 200611.
Após essa breve apresentação do filósofo, será abordada, a seguir, a sua contribuição mais impactante, a chamada Teoria Tridimensional do Direito.
2. Teoria Tridimensional do Direito
A Teoria Tridimensional do Direito é uma marca da filosofia do direito latina-americana. Ela parte do pressuposto de que o fenômeno jurídico deve ser analisado e compreendido de forma que englobe três dos aspectos epistemológicos mais utilizados pelos juristas e filósofos ao longo da história: (i) o fato jurídico; (ii) o valor; e (iii) a norma.
Álvaro Gonzaga e Nathaly Roque (2017) ressalvam que esses fatores devem estar sempre em referência ao âmbito cultural-social da sociedade, como no trecho a seguir:
“É buscada, na Teoria Tridimensional do Direito elaborada pelo professor Reale, a unidade do fenômeno jurídico, no plano histórico-cultural, sem o emprego de teorias unilaterais ou reducionistas, que separam os elementos do fenômeno jurídico (fato, valor e norma). Veja-se, portanto, no decorrer desta exposição, o desenvolvimento, os tipos e a profundidade da proposta do professor Miguel Reale, que apesar de ser uma proposta para se observar, indagar e pensar o fenômeno do Direito impressiona pela sempre atualidade e capacidade de possibilitar uma interpretação correta da realidade jurídica. (GONZAGA, Alvaro; ROQUE, Nathaly; 2017).”
Para Reale (2003), o grande problema é que o direito sempre foi analisado de forma unilateral, por meio de apenas um dos três aspectos supracitados. Sua crítica parte de que, ao longo da Era Contemporânea, o direito era restringido às normas outorgadas pelo Estado - conforme os positivistas na linha de Kelsen, ou como fenômeno social em que o fenômeno jurídico era fruto das relações sociais do espírito cultural de determinada época - na linha historicista e sociológica.
Assim surgiu a principal teoria de Reale. Para ele (2000), o direito não é apenas uma norma ou a letra da lei, indo além da vontade do Estado ou do povo, sendo o reflexo de um ambiente cultural de determinado lugar e época em que os aspectos fático, axiológico e normativo se misturam e se influenciam mutuamente numa relação dialética na estrutura histórica.
Além disso, Reale (2003) contesta o idealismo presente no direito que o faz um corpo abstrato de teorias, comumente omissas em relação à realidade sócio-cultural. Nas palavras de Reale (2003):
“Direito não é só norma, como quer Kelsen, Direito, não é só fato como rezam os marxistas ou os economistas do Direito, porque Direito não é economia. Direito não é produção econômica, mas envolve a produção econômica e nela interfere; o Direito não é principalmente valor, como pensam os adeptos do Direito Natural tomista, por exemplo, porque o Direito ao mesmo tempo é norma, é fato e é valor”.
Para o filósofo, assim como no processo dialético, o direito não está acabado, está sempre em formação. Contrariamente ao tradicional historicismo que tinha condicionante histórica, a concepção de Reale é aberta. Em suas palavras, “O Direito é um processo aberto exatamente porque é próprio dos valores, isto é, das fontes dinamizadoras de todo o ordenamento jurídico, jamais se exaurir em soluções normativas de caráter definitivo” (REALE, 2000, p.574).
Apesar disso, a teoria de Reale (2003) não é considerada relativista. Tal teoria foi fundada na condição humana, tendo o direito como fator essencial a liberdade - assim como Ortega y Gasset. Sendo assim, o aparente relativismo da teoria de Reale (2003) é vencido pela constatação de espécie de direito natural, chamada de “constante axiológica”, em outras palavras, valores intrínsecos aos seres humanos, como a vida, a liberdade, a igualdade, etc.
Para elucidar esse pensamento, segue trecho nas palavras do filósofo:
“A vida do direito não pode, efetivamente, ser concebida senão como uma realidade sempre em mudança, muito embora, a meu ver, se possa e se deva reconhecer a existência de certas ‘constantes axiológicas’, ou, por outras palavras, de um complexo de condições lógicas e axiológicas universais imanentes à experiência jurídica” (REALE, 2003, p.85).
Dentre os fundamentos da teoria da tridimensionalidade do direito, uma característica marcante é a do culturalismo, que pode ser percebida pelo reconhecimento do autor ao analisar os três fatores da teoria.
Reale manifesta um caráter do culturalismo jurídico. Por sua vez, Everaldo Gonzalez (2000) declara que tal teoria de Reale é uma manifestação disso, como observa-se abaixo:
“na Teoria Tridimensional do Direito há uma dimensão ontológica, pela qual Reale disseca o ser jurídico, há uma dimensão axiológica, pela qual Reale demonstra que a essência do fenômeno jurídico é sempre e necessariamente valorativa e, portanto, cultural. Por fim, há uma dimensão gnosiológica, que representa a esfera normativa, isto é, a forma própria de conhecimento do ser jurídico, que é a realidade normativa. (GONZALEZ, Everaldo. 2000).”
Everaldo Gonzalez (2000) reforça que a Teoria Tridimensional do Direito deve de Reale deve ser compreendida no contexto do culturalismo jurídico. Em outras palavras, conforme exposto, o direito é fruto da cultura humana e do processo existencial dos indivíduos e da coletividade.
Dessa forma, o culturalismo jurídico é um dos fundamentos da teoria de Reale em questão, de modo a fornecer notável reflexão sobre os elementos do direito e sua relação com a realidade normativa e social.
Depreende-se, portanto, que a Teoria Tridimensional do Direito e relação dialética entre fato, valor e norma é a maior contribuição de Miguel Reale para a filosofia do direito. Ao tratar do fenômeno jurídico como parte do fenômeno cultural, firmou-se no próprio comportamento humano, no vir a ser histórico, sabendo que as epistemologias poderiam contribuir em muito para o estudo aprofundado do fenômeno normativo, em vez das visões unilaterais ainda predominantes no pensamento jurídico contemporâneo. Dessa forma, o direito deve ser sempre analisado sob a ótica da tríade do fato, valor e norma, para que seja possível que o magistrado amplie sua visão e contemple a realidade externa à letra da lei.
Referências Bibliográficas
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____________, Filosofia do Direito. 19ª ed., Editora Saraiva, São Paulo, 2000.