Governo como fim em si próprio: exigência ou alternativa?
Fato é que a tentativa de imposição de padrões próprios a formas de organização de sociedades não europeias segue a todo vapor. O discurso Hegeliano de que as formas de civilização seguiriam uma trajetória como a europeia e teriam no homem europeu o seu auge ainda nos aflige enquanto sociedade, como padrão (Grau, 2009).
Quando me coloco em lugar de julgar se o que existe numa comunidade indígena, ou qualquer outro povo distante dessa realidade padronizada, é uma forma de governo, me coloco como padrão a ser seguido e a categoria "governo", como um fim em si próprio, reinando algum tipo de autoridade sobre formas de vida, coisa que nem eu, nem qualquer filósofo ou sociólogo ou antropólogo essencialmente é.
Partindo do princípio de que não me sinto habilitada, e muito menos acredito que governos sejam formas primordiais de organização, entendo que essa premissa é formada já numa ideia prévia de subjugação de outros povos e dessa necessidade construída no milênio passado de que ideias europeias reinam sobre o mundo.
De fato, é muito prático me sentar a uma mesa, colocar as regras sob as quais nem eu, enquanto povo, tenho estabilidade em fazer funcionarem, e dizer que tudo aquilo que destoa da regra é uma forma "não civilizada". Seriam, nesse caso, sociedades que não alcançaram um padrão europeu... no entanto, tomando a ideia de Europa em Hegel, nem a própria Europa alcançou esse padrão.
Nesse sentido, a ideia artificial de governo que se tenta impor sobre povos considerados colonizáveis não trata de um fim em si própria, mas de uma forma de alcançar o objeto: a colonização, ou seja, a imposição de padrões segundo os quais um homem europeu poderia governar sobre território alheio.
Ao passo que sociedades consideradas incivilizadas reservam tempo específico ao trabalho, nas sociedades europeias ocorre o alheiamento (Marx, 1963) ou a alienação do indivíduo sobre seus meios de produção, os quais, na forma do distanciamento, não teria lógica a ser seguida na sua rotina se não a reprodução não necessariamente racional do objeto do seu trabalho.
Por vezes, nos encontramos em reproduzir parcelas tão pequenas desse trabalho, que nem sabemos o que estamos produzindo. Ora, se é isso que o europeu chama de civilização, pessoalmente não há desejo em seguir produzindo a mais-valia (Marx, 1981), e não há que se indicar que definitivamente haja diferença entre governantes e governados.
Como reprodução de poder deita-se a lógica da diferenciação fundamental e perfeitamente natural entre o povo e seu governante (Carvalho, 2003), nisso, essas outras formas de organização mormente combatidas colidem frontalmente. Caso não exista, efetiva e primordialmente, essa diferença na composição biológica de corpos, ela vai residir na conformação de poderes.
Sendo a conformação de poderes plenamente artificial, com vias a reproduzir, neste caso, lógica de reprodução capitalista e colonial, resta patente que não há nada de natural no processo de subjugação partindo de governantes para governados, e sim um objeto preguiçoso e servil a algo falso como um governo como um fim em si mesmo, como sinal essencial de civilização, quando não é mais que a forma escolhida por um grupo pra se organizar.
GRAU, Daniel Innerarity. A ideia de Europa em Hegel. Contradictio, v. 2, n. 1, p. 56-74, 2009.
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. O trabalho alienado. Economia política e filosofia, p. 151-163, 1963.
MARX, Karl. Capital: volume I. Penguin UK, 2004.
DE CARVALHO, José Murilo. A construção da ordem: a elite política imperial; Teatro de sombras: a política imperial. Editora Record, 2003.