Estaríamos vivenciando um novo pseudo-tecnicismo exegético?

De acordo com Norberto Bobbio [1], a escola da Exegese francesa nasce no início do século XIX, com base na ideia de que as regras só seriam jurídicas se codificadas pelo Estado, a partir de uma teoria subjetivista de sua interpretação, levando em conta a literalidade do texto legal e o apego às autoridades, além de reconhecer ainda princípios naturais vistos como pré-positivos, porém só visualizar funcionalidade jurídica quando positivados. O cerne desta corrente era a existência de um Código forte - o Napoleônico, em que os juristas encontrariam respostas claras a todos os conflitos sociais existentes. Neste contexto, Maria Margarida Lacombe Camargo diz que “havia uma pretensão de se encontrar na lei a resposta para todos os conflitos. De fato, em um momento de pouca complexidade social e progresso em lenta evolução, o código napoleônico conseguiu manter-se praticamente inalterado até o final do século, e com ele as propostas da escola da exegese” [2].

Assim, à essa época não era aceitável a aplicação de outras fontes do direito, estando o Código Napoleônico incorporado na medida do possível aos outros códigos, configurando um verdadeiro monopólio da manifestação do direito, como visto por António Manuel Hespanha [3]. Logo, os juízes eram responsáveis pelo enquadramento dos fatos às normas a partir da análise de ambos, constituindo uma atividade robótica de mera aplicação do direito, buscando seu sentido original (COSTA, 2020), sem liberdade alguma se quer para interpretar a norma em questão, não sendo competentes para legislar sobre o assunto e somar a este direito francês já fechado e positivado. Consequentemente, precedentes judiciais também não eram uma fonte aplicável, ou melhor, existente, já que existia a ideia de um Código completo. Lacunas? Jamais… omissão, obscuridade e insuficiência não eram características possíveis às leis em tal época.

Ao analisar este antigo movimento exegético, vê-se que ele entrou em declínio porque o Código não foi mais suficiente como acreditavam ser, tendo a Revolução Industrial originado mudanças e, consequentemente, novos conflitos sociais e reivindicações por parte da população que não eram esperados, o que exigiu do ordenamento uma rápida adequação, visto que não tinha mais como sustentar a visão de direito proposta por Baudry-Lacantinerie, como um instituto regulador dos fatos e não adaptável a eles (COSTA, 2020).

A verdade é que unir todas as soluções a conflitos sociais em um mesmo Código é impossível. A dinamicidade das relações possibilita inúmeras situações eventuais diárias e nenhum legislador tem como prever tais casos e já positivar suas soluções. Desta forma, as lacunas não podem ser vistas como falhas no ordenamento, mas apenas como uma incapacidade de a legislação antecipar todo e qualquer tipo de dissídio, sendo indispensável a interpretação por parte dos operadores do direito não só a respeito dos fatos e suas consequências jurídicas, como era feito durante a exegese, mas da própria norma.

Além disso, é sólido afirmar que a mera aplicação das leis pelos juízes, sem nenhum tipo de interpretação normativa real e autêntica, é quase inacreditável, tendo em vista que todos possuem seus valores, tradições e seus juízos prévios, o que dificulta a ideia de uma análise própria de maneira cega e mecânica como exigido. Desta forma, é papel do juiz fazer uma verificação completa do caso e de todo o aparato normativo cabível, para chegar à uma decisão justa e que seja o melhor aplicável para ambas as partes. Fala-se em uma defesa e justificativa da visão apontada, não se prendendo à vontade do legislador, e não de um sistema paralelo, fundado em seus próprios preconceitos (COSTA, 2020). É superar a possível aplicação forçada de certas leis com o objetivo de solucionar as adversidades nem sempre com o melhor resultado.

A partir dos problemas já citados no que diz respeito à Escola da Exegese, observa-se que há a necessidade de expandir o disposto no ordenamento jurídico stricto sensu, bem como alargar a responsabilidade dos julgadores quanto à ponderação dos valores disponíveis em cada caso concreto. Nessa linha de raciocínio, há a forte presença dos precedentes, em que são solidificados novos entendimentos, usados diariamente como fontes válidas do direito. De acordo com Didier Jr. e Pedro Miranda de Oliveira, a definição de precedente é vista como “decisão judicial o tomada à luz do caso concreto, cujo núcleo essencial pode servir como diretriz para o julgamento posterior” [4] e “o caso já examinado e julgado, cuja decisão primeira sobre o tema atua como fonte para o estabelecimento (indutivo) de diretrizes para demais casos a serem julgados” [5].

Ao falar sobre uma onda contemporânea exegética possível, urge expor o fato de que realmente as leis meramente codificadas não são o ponto chave para o direito hoje, como um sistema autossuficiente. Diversas fontes são introduzidas para a solução de conflitos, sendo de extrema importância a jurisprudencial. A tese defendida nem precisa ser exótica para que os advogados usem e abusem de precedentes jurídicos provenientes de diversos tribunais com a finalidade de embasar as suas ideias e mostrar ao juiz que os argumentos apresentados são plausíveis e de deferimento admissível.

No entanto, com o passar dos tempos, a importância dada aos precedentes foi crescendo, já que, como entendido por Kant, a jurisprudentia abarca a compreensão de todas as leis, sejam elas naturais ou positivas (KANT, 1897). Isto posto, cada vez mais o Poder Judiciário interfere em matérias alheias à sua alçada, pela tradição criada pautada na necessidade do posicionamento de tribunais acerca de assuntos até mesmo políticos, criando precedentes para futuros contratempos, não importando se existe tal competência ou não.

Por fim, um motivo de grande relevância para essa educação jurídica diferenciada dos dias atuais vem das próprias universidades, semelhante às faculdades de direito à época da escola da exegese, como apresenta o professor Alexandre Costa em seu texto “O ocaso da filosofia do direito no século XIX”. Os estudantes possuem uma grade focada em um ensino altamente teórico, com desenvolvimento fácil na prática jurídica. Ainda que as disciplinas filosóficas e sociológicas estejam mais presentes hoje, seguem escassas, existindo muitas vezes apenas para preencher um currículo acadêmico, com baixo aproveitamento, criando futuros juristas cada vez mais à par da base teórica e filosófica que originou o sistema vigente, se apegando às fontes relevantes com base em um tecnicismo absurdo, fazendo com que toda a estrutura que ampara a prática fique como um pano de fundo, porém, invisível (COSTA, 2020).

O quadro ainda ganha relevo quando se constata que o atual Presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), Ministro Luix Fux, categoricamente já se posicionou no sentido de que "[...] o Direito é aquilo que os tribunais dizem que é" (TSE, Recurso Especial nº 7.586, rel. Min. Luciana Lóssio) [6]. Ora, a frase – ainda que curta e passível de inúmeras e frutíferas discussões – necessariamente indica para a existência de um pensamento que valoriza aquilo que o órgão judiciário diz que é o direito, dizendo-o, em verdade, por meio de julgamentos, que formam precedentes e, eventualmente, uma jurisprudência.

Logo, é possível constatar que a exegese da jurisprudência não se trata apenas de um movimento que encontra respaldo por setores profissionais e "acadêmicos", mas também por aqueles que apreciam os conflitos existentes na nossa sociedade, em uma absoluta – e errônea – redução da retórica jurídica àquilo que eventual juiz ou tribunal venha a enunciar.

Em vez de afirmar ou negar a existência de uma recente onda de um período exegético, fica a reflexão com base nos argumentos apresentados: será que realmente só foi alterado o ponto central de uma antiga teoria e se vive uma nova Escola da Exegese pautada em precedentes? Parece-nos que há uma incessante busca dos operadores por uma exegese, por um marco objetivo, seja ele qual for. A saída pelos precedentes, entretanto, parece facilitar a solução por acasos e especificidades, em contrariedade às reflexões acerca da própria ciência social direito e das normas gerais e abstratas emanadas pelo Poder Legislativo.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

[1] BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: Lições de Filosofia do Direito. São Paulo: Ícone, 1995;

[2] CAMARGO, Maria Margarida Lacombe. Hermenêutica Jurídica e Argumentação: Uma contribuição ao Estudo do Direito, 2001;

COSTA, Alexandre. O ocaso da filosofia do direito no século XIX, 2020;

COSTA, Alexandre. David Hume e a negação de uma ordem jurídica natural, 2020;

[3] HESPANHA, António Manuel. Cultura Jurídica Européia: Síntese de um Milénio, 2003;

[4] DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil. v. 1, 14 ed. Salvador: Juspodivm, 2012;

[5] OLIVEIRA, Pedro Miranda de. O binômio repercussão geral e súmula vinculante: necessidade de aplicação conjunta dos dois institutos. Direito jurisprudencial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012;

Rocha, Sérgio André. Evolução histórica da teoria hermenêutica: do formalismo do séculos XVIII ao pós-positivismo. Petrópolis: Lex Humana, nº 1, 2009.

[6] KARAM TRINDADE, André; STRECK, Lenio Luiz. A insurreição do ministro Gilmar Mendes contra o realismo jurídico. Publicado no ConJur, em 17/12/2016. Disponível em <https://www.conjur.com.br/2016-dez-17/diario-classe-insurreicao-ministro-gilmar-mendes-realismo-juridico>.