Enrique Dussel - Trajetória e Contribuição

Enrique Dussel nasceu em 24 de dezembro de 1934 na Argentina. Concluiu a graduação em filosofia na Universidade Nacional de Cuyo em 1957, período em que foi um líder estudantil militante em prol das causas antifascistas e democráticas. Dussel finalizou seu primeiro doutorado em 1959 na Universidade Complutense de Madrid, em estudos sobre bem comum; o segundo doutorado foi realizado na Sorbonne sobre História da Igreja (1967). Além disso, o filósofo possui títulos de Doutor Honoris Causa pela Universidade de Friburgo, na Suíça, e pela Universidade Mayor de San Andrés, na Bolívia.

Durante a ditadura militar argentina, Dussel sofreu um atentado em sua própria casa em 1973, em 1975 foi  expulso da Universidade Nacional de Cuyo, e ainda nesse ano se exilou no México.

Grande crítico do pensamento eurocêntrico, as principais contribuições de Enrique Dussel foram sobre a chamada Filosofia da Libertação. O que seria, portanto, uma “filosofia da libertação”? Libertação de quê?

Compreendendo que cada sociedade possui suas particularidades, o filósofo propõe uma renovação da Teoria Crítica das Ciências Sociais da Modernidade a partir do olhar e da perspectiva daqueles que o autor chama de “vítimas” ou de “outro”, isto é, sujeitos que tiveram suas vozes e seus reconhecimentos negados durante todo o processo histórico da modernidade. Em contraponto, o autor introduz o conceito de totalidade, uma expressão do poder dominante, que dita o fato e como as coisas são na sociedade, as “vítimas” , seriam, segundo o autor, os latino-americanos, os asiáticos, o índio, e de todas as outras vítimas da totalidade. De acordo com Dussel, somente assim seria  legítima a emancipação (libertação) desses sujeitos (COUTO; CARRIERI, 2018)

Dussel entende que o pensamento filosófico, ético e moral moderno é fortemente influenciado pelo pensamento europeu - como se somente este existisse. Assim,  rechaçando a ideia do eurocentrismo no pensamento filosófico, o autor busca a libertação dos oprimidos, colonos e marginalizados. Percebe-se, portanto, que o pensamento do autor tem um fundamento político forte, em linhas com visões anti-capitalistas como a do Marx.

A primeira crítica do filósofo é contra a ideia de totalidade. Para ele, o colonizador, ao definir o que é, a partir de uma perspectiva ontológica e se pautando a ideia de neutralidade da ciência, também define o que não é, construindo, assim, referências de verdade e realidade absolutas, que acabam por justificar a colonização dos povos oprimidos. Nas palavras de Dussel (p. 11, 1977):


“O pensamento que se refugia no centro termina por ser pensado em uma única realidade. Fora de suas fronteiras está o não-ser, o nada, ou barbárie, o sem-sentido. O ser é o próprio fundamento do sistema ou a totalidade de sentido da cultura e do mundo do homem do centro”

A categoria de totalidade desenvolvida por Dussel se aproxima muito dos conceitos de zona do ser e zona do não ser desenvolvidos por Frantz Fanon (2008).

Segundo Fanon (2008), o projeto colonialista europeu, de base escravista, dividiu os indivíduos, a partir da categoria de raça, entre a zona do ser e a zona do não ser. Nessa lógica, enquanto na zona do ser está o sujeito branco, parâmetro de humanidade, equilíbrio e serenidade, na zona do não ser está o sujeito negro, historicamente escravizado e animalizado. Desse modo, o processo de identificação da violência, tendo como base a humanidade da zona do ser, impede o reconhecimento de outras formas de violências, em especial as que são características da zona do não ser (PIRES, 2018).

Esse processo é chamado de “divinização ontológica”, o qual se firma na ideia de ego cogito do europeu, justificando a sua própria conduta opressora com um manto de racionalidade e superioridade intelectual do europeu.

O autor destaca, ainda, que a divinização ontológica surge a partir de um histórico de dominação e de opressão cultural, já que “antes do ego cogito existe o ego conquiro (o ‘eu conquisto’ é o fundamento prático do ‘eu penso’)”. Desse modo, na perspectiva do colonizador, se ele é superior intelectual e racionalmente, logo, ele deve conquistar os povos ditos inferiores. Nesse contexto, Dussel levanta o  seguinte questionamento:

"o centro se impôs sobre a periferia há cinco séculos. Mas, até quando? Não terá chegado ao seu fim a preponderância geopolítica do centro? Podemos vislumbrar um processo de libertação crescente do homem da periferia?” (DUSSEL, p. 10, 1977)

O problema dessa situação é que não somente o colonizador acaba pautando sua filosofia na totalidade, mas a própria vítima acaba sucumbindo e mergulhado na ideia de ego cogito, replicando a mesma situação nas outras vítimas. Essas vítimas compõem a categoria dusseliana da “exterioriedade”, e é o objeto de destino da Filosofia da Liberação. O objetivo não é a de integrar a exterioridade na totalidade, mas de romper essa construção opressora, criando um lugar próprio. Esse tipo de visão pode ser observado nas críticas que Dussel teceu contra os Habermas. O discurso do alemão de espaço de diálogo não poderia ser aplicável aos sujeitos colonizados, aos quais não é permitida a livre expressão, um local de fala. Ou seja, Habermas foca o seu discurso numa visão da totalidade, num contexto onde o ponto de partida é a visão do próprio europeu, dominador e opressor (CASELAS, 2009).

Conforme discutido, o argentino propõe uma visão filosófica que se opõe ao pensamento colonizador. Isso não significa, porém, uma contraposição no sentido de criar um contraponto do opressor, pois isso só estaria replicando um modelo de dominação análoga. Ao invés disso, o autor diz sobre a questão de reconhecer o “outro”, ou seja, todos os outros indivíduos. Uma visão que prega, portanto, a empatia.

Outro ponto é sobre a mediação. O filósofo atribui ao pensamento europeu ver o redor como um meio, um objeto, não como um ser humano. Por isso, por exemplo, que os sistemas econômicos e políticos são tão desprovidos de uma preocupação latente com os vulneráveis. Os outros são meios, e não fim (COUTO, 2018). Esse ponto lembra uma das morais de Kant, que pregava que os outros deveriam ser vistos como fim em si mesmo, mas não um meio. Essa empatia levaria a uma categoria que deságua na solução da totalidade, a proximidade. A proximidade é a relação que pode existir entre as pessoas uma vez que as barreiras que separam são removidas. São as relações afetivas como amizade, interesse sexual, fraternidade, entre outros. O oposto, a proxemia, ocorre quando um ser trata um outro como um objeto.

Todos esses desenvolvimentos trazem a última categoria da libertação: a categoria em que há o reconhecimento da condição como vítima, como exterior ao centro, levando à emancipação. A libertação é completa, pois não se pensa somente na vítima, no outro, ou no opressor. É uma visão libertadora de todos que se encontram entranhados na lógica exclusivista dos colonizadores, que cria os “outros”, a “vítima”, e o “eu conquistador”. Todos devem pensar do ponto de vista do outro, reconhecendo simetricamente as demandas.

Como pode-se concluir, a visão filosófica de Dussel entra em contraponto com a filosofia eurocêntrica. Os estudos e reflexões de Dussel esclarecem que, ainda que não necessariamente invalidando, as reflexões dos filósofos europeus são invariavelmente baseadas na filosofia do conquistador, que exclui e se coloca numa posição de dominação, inferiorizando e retirando a importância de tudo aquilo que não for o dominador. Apesar de ter como contexto uma sociedade latino-americana, Dussel encaminha seus discursos a todos aqueles que não possuem protagonismo na sociedade moderna, bem como adverte aqueles pertencentes a classe dominante sobre a situação imoral que foi nutrida ao longo desses tempos. Mais do que uma filosofia puramente racional, Dussel traz um discurso filosófico-político de emancipação e encorajamento de todos aqueles excluídos, vítimas da própria cultura do colonizador, conscientes ou não da sua condição.

Referências

CASELAS, José Maria Santana - A utopia possível de Enrique Dussel: a arquitetônica da Ética da Libertação. Disponível em https://www.google.com/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=&ved=2ahUKEwj_7bnVprbwAhVlHbkGHXlmCC0QFjAAegQIBBAD&url=https%3A%2F%2Fwww.revistas.usp.br%2Fcefp%2Farticle%2Fdownload%2F82608%2F85569%2F114180&usg=AOvVaw3nqSeaeOR_am0fZToiQSGI, acessado em 06/05/2021.

COUTO, Felipe Fróes, et al. Enrique Dussel e a Filosofia da Libertação nos Estudos Organizacionais. Cad. EBAPE.BR,  Rio de Janeiro ,  v. 16, n. 4, p. 631-641,  Dez.  2018. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1679-39512018000400631&lng=en&nrm=iso, accessado em 05/05/2021

Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Enrique_Dussel. Acesso em 05 de maio de 2021.

DUSSEL, Enrique D. Filosofia da Libertação na América Latina. 2ª Ed. Trad. Luiz João Gaio. São Paulo: Loyola/UNIMEP, 1977.

FANON, Frantz. Tradução de Renato da Silveira. Pele negra máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.

PIRES, Thula; FREITAS, Felipe (orgs.). Vozes do cárcere: ecos da resistência política. Rio de Janeiro: Kitabu, 2018