É natural que exista uma distinção entre governantes e governados?

O debate sobre a dominação do homem pelo homem, ou, nesse caso, dos governados pelos governantes sempre foi muito controverso. Mesmo a antropologia, que por muito tempo buscou entender se haveria algo de natural na jornada do homo sapiens sobre a Terra, diverge acerca da naturalidade do domínio.

Para um dos principais sociólogos brasileiros, Darcy Ribeiro, o território que viria a se tornar o que hoje é chamado de Brasil era povoada por uma miríade de povos tribais falantes de um mesmo dialeto e pertencentes ao mesmo tronco linguístico, o que não impedia sucessivas diferenciações ao longo da jornada dos povos. Para o antropólogo, tivessem estes povos mais alguns séculos de liberdade e autonomia seria:

possível que alguns deles se sobrepusessem aos outros, criando chefaturas sobre territórios cada vez mais amplos e forçando os povos que neles viviam a servi-los, os uniformizando culturalmente e desencadeando, assim, um processo oposto ao de expansão por diferenciação. (RIBEIRO, 2015, p. 25)

Em contrapartida ao pensando de Ribeiro, Pierre Clastres, outro antropólogo de extrema relevância para a compreensão das sociedades, propõe como modelo teórico a ideia de que as tribos arcaicas, em especial as sul-americanas, objeto de sua análise, manifestam uma vontade profunda de manutenção da ordem social, agindo para barrar a emergência de um poder político individual e centralizado que possa corromper o equilíbrio da comunidade. (COSTA, 2020)

Apesar das divergências teórico-metodológicas dos dois autores, ambos acabam por tentar dar um significado ao que seria a chamada “naturalidade” de determinado povo.

Por sua vez, como demonstram os estudos de Clastres, a distinção entre governantes e governados não é uma verdade absoluta, tampouco uma naturalidade. Por vezes, os indivíduos e as sociedades acabam por internalizar uma determinada concepção sobre o mundo, sobre as relações sociais, as religiões e as ideologias. Assim, as tomam como absolutas e necessárias para a manutenção de uma ordem que, ao fim, é apenas imaginária e temporária. A imposição de uma estratificação social, como argumenta Harari, só foi possível pela capacidade desenvolvida pelos sapiens de impor uma crença social compartilhada que, a partir dela, impusesse uma doutrina de domínio. (COSTA, 2020)

Desde a revolução agrícola até os dias atuais, a divisão da sociedade entre governantes e governados, apesar de ter logrado avanços significativos, impôs para grande parte da população mundial um modo de viver extremamente prejudicial e alienante. A desigualdade política é fundamental para a manutenção das diversas formas de desigualdade, quais sejam, a econômica, de gênero, de raça ou de oportunidades.

De forma excelente, Alexandre A. Costa citando Harari, demonstra que as ordens de dominação simbólica precisam de uma articulação extremamente complexa, em que direito, moral e religião desempenham papel fundamental na manutenção dessa ordem imaginada. Desde o início, com a revolução agrícola e a consequente troca do nomadismo pelo sedentarismo, a história da humanidade tem sido marcada por profundas desigualdades, doenças e conflitos. (COSTA, 2020)

Aqueles que acreditam ser natural a distinção entre governantes e governados adotam uma visão da história como um processo unidirecional, que parte da "barbárie" rumo à "civilização". Assim, acabam por incluir os povos tradicionais que, ainda hoje, vivem de maneira igualitária e sem hierarquias em um ponto "fora da história da humanidade", como se fossem exceções à regra, ou ainda como se vivessem em um "projeto interrompido"de civilização.

Ora, não há nenhuma garantia de que as sociedades sem Estado desenvolvam, em algum momento, formas de hierarquias e subjugação, como sugere Darcy Ribeiro. Do mesmo modo, é possível que as sociedades hierarquizadas que, atualmente, se organizam politicamente por meio do Estado, venham a extinguir, um dia, as hierarquias e, consequentemente, o próprio Estado.

Essa última possibilidade é, inclusive, a proposta da tradição política inaugurada por Marx, cujo objetivo final é o comunismo, isto é, o fim das classes sociais e do Estado. O revolucionário Vladmir Lênin  assim resume a postura marxista em relação ao Estado:

Eis, expressa com toda a clareza, a ideia fundamental do marxismo no que concerne ao papel histórico e à significação do Estado. O Estado é o produto e a manifestação do antagonismo inconciliável das classes. O Estado aparece onde e na medida em que os antagonismos de classes não podem objetivamente ser conciliados. E, reciprocamente, a existência do Estado prova que as contradições são inconciliáveis. (LÊNIN, 2007, p. 27)

As tentativas de se justificar a estratificação social produziram, na modernidade, a defesa de uma ideia de que um grupo é naturalmente superior aos outros, o que justificou a subjugação, colonização e escravização dos povos americanos, africanos e asiáticos pelos europeus. As experiências fascistas do século XX, como o nazismo na Alemanha, demonstraram as últimas consequências dessa ideologia, ao produzirem uma sociedade internamente hiper-hierarquizada e que pretendia realizar seu destino pela força, conquistando os outros povos do planeta.

Sendo assim, não há que se falar em naturalidade da divisão entre governantes e governados quando, na verdade, o que a história tem demonstrado é que a divisão da sociedade em castas iluminadas se mostra muito mais como a imposição do interesse do mais forte em detrimento de uma ampla maioria de mais frágeis.

E se é assim, por que não pensar um mundo diferente?


COSTA, Alexandre. Pierre Clastres e a Sociedade Contra o Estado. Arcos, 2020.

COSTA, Alexandre. Yuval Harari e a Armadilha da Revolução Agrícola. Arcos, 2020.

COSTA, Alexandre. A ordem imaginada. Arcos, 2020.

LÊNIN, Vladimir Ilitch. O Estado e a revolução: o que ensina o marxismo sobre o Estado e o papel do proletariado na revolução. Tradução por Aristides Lobo. 1ª ed. São Paulo: Expressão Popular, 2007.

RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: editora Global, 2015.