Ditadura Militar, Legitimidade e Soberania
Autores: Adriano Augusto Araújo Magalhães, Carlos Alberto Rabelo Aguiar, Guilherme Domingos dos Reis, Jhonas de Sousa Santos, Raíck Junio dos Santos Silva e Rebeca Cristina Pereira Araújo.
A discussão a respeito da soberania estatal, distorcida e reiteradamente empregada pela cúpula militar do governo no período ditatorial brasileiro, leva em conta a relevância desse marco historiográfico nacional para compreender a relação entre o exercício do poder político e a autonomia do indivíduo. Assim, a manipulação do contexto político relacionado à época tornou-se indispensável para justificar e consolidar um Estado de exceção, dentro do qual buscou-se assegurar violentamente uma unidade político-jurídica incompatível com a soberania promulgada constitucionalmente em 1946.
Idealizada sob o compromisso de redemocratização — especialmente à luz de impedir as experiências totalitárias da Segunda Guerra Mundial em território brasileiro —, a Constituição de 1946 objetivou abandonar o legado autoritário da Constituição de 1937, do Estado Novo, elaborada por Francisco Campos. Neste diapasão, a Constituição promulgada em 18 de setembro de 1946 “(re)fortaleceu os princípios republicano e federativo mas, sobretudo, o princípio democrático” (CHUEIRI, 2014, p. 262).
Contudo, houve uma quebra de expectativas explícita desse compromisso democrático consignado juridicamente em 1945, no poder constituinte originário, com o golpe militar iniciado em 31 de março de 1964 contra o governo constitucional do Presidente João Goulart. Desse modo, pondera-se que o golpe militar foi ratificado inconstitucionalmente pelo próprio parlamento, pois “o Presidente do Senado Auro Moura Andrade declarou vaga a presidência da república” — apesar de o Presidente João Goulart estar em território nacional um dia após o início da conspiração — e, adiante, deu posse do cargo ao Presidente da Câmara, Ranieri Mazzilli (CHUEIRI, 2015, p. 262-263). Portanto:
Como podemos perceber, o limiar entre a ordem e a desordem jurídico constitucional é muito tênue, especialmente porque a todo momento a ordem constitucional é alterada para que se compatibilize com os atos políticos. Ou seja, o levante militar que se apresentara como um movimento da ordem constitucional demonstrava, pelas suas ações, exatamente o contrário. É claro que, em situações como essa, o limite entre ordem e desordem constitucional torna-se frágil, porém, é justamente o desmanche constitucional imediatamente feito pelos militares e pelos parlamentares que nos permite falar em golpe (CHUEIRI, 2015, p. 263, grifos dos autores).
Conforme aborda Friedrich Muller em sua obra “Fragmento (sobre) poder constituinte do povo”, “o discurso sobre poder constituinte é uma ação”, que no militarismo ora instaurado pode ser identificada como legitimadora do ordenamento formado pelo poder-violência em caráter de ordem constitucional. Com isso os militares em sua ruptura democrática se utilizam deste discurso que é legítimo e não é tratado de maneira ideológica, mas como um “direito vigente” (MULLER, 2004, p. 20).
A ideia de poder constituinte no militarismo, faz valer a alienação do que seria o povo que não encontra a si mesmo, tampouco seu respaldo democrático, mas somente a violência estatal que busca manter o povo para si (MULLER, 2004). Ou seja, o poder constituinte é utilizado em contrariedade a sua razão de ser que “em pleno sentido do termo, maciço e real, não mais metafísico, seria o poder do povo de constituir-se” (MULLER, 2004, p. 27). Isto é, um poder que pertence e advém do povo é manejado como um artifício justificador, legitimador e fundamental à manutenção de um Estado autoritário.
Por conseguinte, a análise do Ato Institucional nº 1, de 9 de abril de 1964, traz à baila um dos elementos centrais da experiência jurídica da ditadura militar brasileira: a legalização do autoritarismo no seio social. Decerto, esteve inerente nos governos militares instituídos a faceta de editar normas e manter o regime funcionando “juridicamente”, mesmo ausente o Estado Democrático de Direito. Ademais, em que pese a busca de aparentar a normalidade constitucional do poder público, o questionamento dos Atos Institucionais editados era inviável (PAIXÃO, 2018).
Isso remete a um dos questionamentos de Carl Schmitt sobre o porquê de uma norma como a Constituição seria vigente; ele responde que pelo fato de ter sido instituída por uma vontade que se integra imediatamente ao poder constituinte, o qual foi invocado deturpadamente no preâmbulo do AI nº 01/1964: “A revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte. Este se manifesta pela eleição popular ou pela revolução. Esta é a forma mais expressiva e mais radical do Poder Constituinte.” A característica principal da ditadura militar está atrelada à sua ruptura constitucional e à vedação da democracia, então, como pode um AI que revoga a Constituição vigente pela vontade do poder constituinte, ser legitimado pelo mesmo poder? (SCHMITT, 1928, p. 09 APUD MULLER, 2004, p. 33).
A manipulação do poder constituinte no AI nº 01/1964, consequentemente, transformou o Direito no principal mecanismo de manutenção do sistema. Francisco Campos (o autor da carta outorgada de 1937) foi o teórico que associou o golpe militar aplicado à ideia de revolução e, como decorrência, ao poder constituinte originário (CHUEIRI, 2015, p. 264). A suposta “revolução vitoriosa” em trâmite, asseverou a ruptura com a ordem constitucional então vigente, permitindo-se que o alegado momento excepcional de uma "ameaça comunista” fosse objeto de uma “reconstrução econômica, financeira, política e moral do Brasil, de maneira a poder enfrentar, de modo direto e imediato, os graves e urgentes problemas de que depende a restauração da ordem interna e do prestígio internacional da nossa Pátria” (BRASIL, 1964).
Com este propósito, a exposição de motivos do AI nº 01/1964 endereçada à “Nação brasileira” tem como central a legitimação popular da cúpula das forças armadas, em evidente anseio de angariar capital político — sob a justificativa do “movimento revolucionário” se constituir uma parceria entre os movimentos civis conservadores com o militarismo. Em razão disto, o animus revolucionário foi forçado à coletividade de tal maneira que o Poder Executivo foi protagonista em intervir sobre o Poderes Legislativo e Judiciário, com o intuito “legítimo” de que o exercício da soberania não pudesse sofrer insurreições internas, quais sejam por meio dos direitos políticos ou do controle jurisdicional, que foram limitados aos “interesses da pátria”.
Conforme prolongou-se o regime militar, percebeu-se a coexistência entre o constitucionalismo autoritário e os Atos Institucionais (AI’s), que invocaram o poder constituinte popular como legitimação da ditadura e da supressão de direitos sucessivamente. Assim, estruturou-se uma espécie de “circularidade” entre os AI’s, pois um necessitava do outro, produzindo-se uma narrativa em cadeia para garantir juridicamente a legalização do autoritarismo (PAIXÃO, 2018). Ainda que essa ferramenta tenha sido prestigiada por muitos juristas inicialmente — até mesmo membros do Poder Judiciário e do Ministério Público — o pretenso clima de normalidade do AI nº 01/64 não se sustentou por muito tempo e o abuso da violência estatal com os indivíduos nesta concepção de soberania se desdobrou em torturas e mortes.
A manutenção do Estado em um cenário como o da ditadura militar trouxe a necessidade de organização pela via normativa atrelada às obrigações a serem cumpridas e às motivações que deveriam ser geradas aos funcionários do direito; isso se insere num ciclo de de informações que simultaneamente se torna um ciclo de motivações, o qual permanece estável em si, de maneira tendencial, sendo inerente que os seguintes fatores não parem de funcionar: o de ser considerado vinculante juridicamente, o de responder questões atuais e o de ser assegurado e sancionado (MULLER, 2004). Esse entendimento é usado por Friedrich Muller para explicar um pouco sobre a função da organização em um estado legitimador constituído de poder-violência.
A partir destes elementos, pode-se refletir que a soberania alicerçada nos ideais autoritários do regime ditatorial brasileiro — institucionalizada por meio do AI nº 01/1964 e reiterada nos AI’s seguintes — fundamentou-se na preservação da segurança nacional pelas forças armadas, de modo que a vigência dessas legislações excepcionais deveria se refletir na realidade, na juridicidade e na prática (SCHMITT, 1928, p. 09 Apud MULLER, 2004, p. 34). Apesar de a restauração da moral e dos valores tradicionais ter um peso significativo, em contraposição à ameaça comunista de desagregar o país, o golpe inaugurado em 1964 traz muitos elementos que partem de um contexto de soberania política defendida por Hobbes.
Com o endereçamento de uma “Carta à Nação”, conforme exposto no preâmbulo do AI nº 01/1964, as forças armadas procuraram estabelecer um vínculo com os indivíduos, considerados racionais e autônomos, para questionar a “autoridade das regras tradicionais, cuja validade não mais era sentida como natural” (COSTA, 2020). Ou seja, segundo uma avaliação das medidas governamentais do Presidente João Goulart, a ordem constitucional estaria ameaçada por atores internos e externos, antagonistas dos interesses da pátria, sendo necessário que as instituições militares colocassem cada um dos indivíduos para exercer o poder legítimo na suposta “revolução” em trâmite .
Em virtude de dois pressupostos defendidos por Hobbes (o da racionalidade humana e o do egoísmo humano), a formação de um poder político organizado depende exclusivamente da realização de um contrato de indivíduos com outros indivíduos para que todos possam garantir sua sobrevivência e defender seus interesses pessoais (COSTA, 2020). Nessa linha de raciocínio, o poder político central capaz de manter esses acordos foi atribuído às forças armadas, por meio de um Estado fortemente unificado no Poder Executivo e na supressão dos direitos dos indivíduos como mecanismo de assegurar a paz social.
Igualmente, embora tenha existido a diferença do Estado militarista da época em estabelecer um vínculo popular para o progresso da “revolução” e do “poder constituinte” — o que não se aplica a Hobbes, pois não há um pacto do soberano com os indivíduos —, tanto a soberania das forças armadas, quanto a soberania defendida pelo filósofo inglês se comunicam na organização de um poder unificado capaz de “ter plenos poderes para organizar a sociedade de forma construir novos equilíbrios e a evitar a guerra civil” (COSTA, 2020).
É nítido que não cabe uma comparação anacrônica a respeito da teoria política de Hobbes se aplicar totalmente à ideologia antidemocrática da ditadura militar brasileira, entretanto, o compartilhamento das semelhanças ora examinadas contribui para que o exercício da soberania seja enxergado como uma dinâmica integrante de cada governo político instituído pelo homem.
Ao que se reflete no contexto contemporâneo do Estado Democrático Social e de Direito, sob a vigência da Constituição Federal de 1988, não seria possível que nenhum grupo de pessoas ou entidade política causasse uma ruptura institucional pautada numa legitimidade de caráter normativo ou social semelhante ao ocorrido em 1964. A ditadura militar teve sua base em Atos Institucionais promulgados por um golpe de forte impacto na ordem jurídica que não só a alterou, como distorceu o poder constituinte que mantinha o vigor constitucional , além de utilizá-lo como mecanismo que tornava possível o estabelecimento das normas repressivas ora proclamadas. Afirma-se que não houve legitimidade de qualquer espécie de poder constituinte em 1964, e sim um golpe militar que se operou de maneira antidemocrática, restringindo-se as conquistas verdadeiramente constitucionais dos cidadãos brasileiros após a promulgação da Constituição de 1946.
Referências Bibliográficas:
BRASIL. Ato Institucional nº 1, de 9 de Abril de 1964. Dispõe sobre a manutenção da Constituição Federal de 1946 e as Constituições Estaduais e respectivas Emendas, com as modificações introduzidas pelo Poder Constituinte originário da revolução Vitoriosa. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ait/ait-01-64.htm. Acesso em: 26 març. 2021.
CHUEIRI, Vera Karam de; CÂMARA, Heloísa Fernandes. (Des) ordem constitucional: engrenagens da máquina ditatorial no Brasil pós-64. Lua Nova: Revista de Cultura e Política, n. 95, p. 259-288, 2015.
COSTA, Alexandre. As origens da soberania. [S. l.], 2020. Disponível em: https://novo.arcos.org.br/a-invencao-da-soberania/. Acesso em: 27 mar. 2021.
MULLER, Friedrich. Poder constituinte: não uma ideologia, mas uma questão de direito. In:. Fragmento (sobre) o Poder Constituinte do povo. Tradução de Peter Naumann. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 19-36.
PAIXÃO, Cristiano. Anotações de aula da Disciplina História do Direito. Universidade de Brasília - Faculdade de Direito. 2018.