Direito, norma e linguagem

Autores: Ana Beatriz Eirado e Thamires

Introdução

Ao se falar de Kelsen, a primeira coisa que vem à minha cabeça é a famosa “pirâmide de Kelsen”. Caso essa imagem tenha aparecido para você leitor, peço que a deixe de lado, por um momento. O foco principal desse texto é a linguagem. Por isso, abandone por alguns minutos os significados ligados ao nome de “Kelsen” que podem, porventura, dificultar a nossa comunicação. Precisamos partir da mesma base conceitual e apesar de nossos universos de significados serem completamente distintos, este texto pode ser encarado por você como exercício cognitivo.

Aqui organizo os conceitos que minha mente, até o momento, foi capaz de associar para transmitir ideias. Não busco ser detentora das interpretações corretas e muito menos da verdade. Meu único objetivo é me comunicar. Ou pelo menos tentar, afinal, tendo em vista nossos diferentes pontos de partida e formas de compreender o mundo, tal tarefa parece um tanto quanto impossível.

Não posso afirmar, por ora, que compreendo completamente o pensamento de Kelsen, mas digo que minha percepção sobre o autor mudou significativamente. Disso, para isso:

Perdoem a minha ignorância, no entanto, para mim, ele era um intelectual renomado e muito bem visto principalmente na área do Direito, desde sempre. Mal imaginava que enquanto vivo fosse uma figura cujas ideias já eram bastante polêmicas. Foi acusado de facista, de democrata liberal, de capitalista, de comunista, de católico, de protestante, de ateísta, resumindo com um termo contemporâneo: foi “cancelado”, como descreve no prefácio da primeira edição de sua obra “Teoria Pura do Direito”. Suas ideias eram interpretadas pelos críticos como “um perigo sério para o Estado constituído e para o seu Direito” (KELSEN, 1998, p. 8). Segundo o autor, as críticas não se dirigiam propriamente à sua obra, mas à imagem dela construída pelos seus opositores.

Kelsen, norma, direito e linguagem

Para entender Kelsen, é preciso lembrar do giro linguístico e da importância que a linguagem recebe enquanto forma de compreensão e valoração do mundo. Sua Teoria Pura, analisa o Direito a partir da linguagem e configura-se como uma teoria da interpretação. Ele parte da seguinte pergunta: “o que é e como é o Direito?” (KELSEN, 1998, p.12)

Sua grande contribuição é compreender o Direito enquanto um conjunto de normas e as normas enquanto aquilo que empresta a um fato significação jurídica. A ideia de que as normas são construções humanas valorativas que resultam de um processo interpretativo é um tanto quanto polêmica em um período marcado por ideias jusnaturalistas.

O Direito Natural, partia do pressuposto de que as regras do comportamento humano são deduzidas da própria natureza (OLIVEIRA, 2010) e enquanto resultado de uma abstração representam o ideal a ser seguido. Kelsen, por sua vez, difere desse pensamento ao afirmar que a conduta humana torna-se ato jurídico a partir de uma interpretação valorativa. Para ele o “valor não é imanente à realidade natural. Portanto, o valor não pode ser deduzido da realidade” (OLIVEIRA, 2010, p. 125)

Kelsen abala as estruturas institucionais ao afirmar que o direito não é resultado da natureza e que sua validade não decorre de princípios absolutos.  Ele basicamente, apresenta a fragilidade das ideias que legitimavam o sistema jurídico até então, ao declarar que a validade das normas jurídicas decorre de outra norma jurídica e que a validade de todo o ordenamento jurídico depende de uma norma fundamental.

No entanto, essa norma fundamental, não decorre nem da natureza das coisas, nem de uma autoridade divina, mas é uma ficção jurídica, uma vez que “ela tem de ser pressuposta” (KELSEN, 1998, p. 136). Sua teoria não busca demonstrar a validade da norma fundamental, mas apenas constatar que existe uma norma que dá validade ao resto do ordenamento jurídico.

Nesse sentido, é fácil perceber por que Kelsen foi visto como uma ameaça para o Estado. Uma vez que, se o sistema jurídico não é natural, nem divino, mas uma mera construção humana que parte de uma pressuposição, como podemos sustentá-lo e legitimá-lo?

Em sua obra “Teoria Pura do Direito” Kelsen, deixa claro que a norma, para ele, possui um significado mais amplo do que o usual sendo concebida enquanto um “dever-ser” que prescreve, permite ou faculta a alguém determinado comportamento, de forma objetiva e válida, podendo resultar de um ato de vontade ou de um ato de pensamento (HANS, 1998).

É importante ainda ressaltar que ao defender uma ciência jurídica e critérios mais objetivos para a aplicação do direito, foi interpretado por muitos como legalista. No entanto, norma para o autor, não é texto, mas sim sentido. Ademais, ele não busca construir uma teoria desvinculada da história e nem com validade absoluta (COSTA, 2020).

Por fim, pode-se dizer que, de forma um tanto quanto paradoxal, sua teoria da interpretação do direito é até hoje mal compreendida e mal interpretada.


Referências Bibliográficas

COSTA, Alexandre. Hermenêutica Jurídica, Cap. V (Neopositivismo), item 2: Teoria Pura do Direito. Arcos, 2020.

__________ . A filosofia e os paradoxos da linguagem. Arcos, 2020.

KELSEN, Hans. Teoria pura do direito; 6ª ed.São Paulo: Martins Fontes.Tradução João Baptista Machado. 1998.

OLIVEIRA, Júlio Aguiar de; LESSA, Bárbara Alencar Ferreira. Por que as objeções de Hans Kelsen ao jusnaturalismo não valem contra a teoria do Direito Natural de Tomás de Aquino?. Revista de Informação Legislativa, a. 47 n. 186 abr./jun. 2010.