Autonomia e Liberdade no contexto de estratégias de enfrentamento da Covid-19
Autores: Bárbara de Oliveira Aguiar, Lucas Moreira Ribeiro, Ludmila Laiara de Oliveira Queiroz, Mário Pereira Machado Filho, Samuel Lucas Machado Lopes.
1. INTRODUÇÃO
O início de 2020 foi marcado pela eclosão de uma pandemia causada pelo novo coronavírus, que movimentou quase todos os governos ao redor do globo a tomarem medidas restritivas, nas quais o distanciamento social e o cerceamento da liberdade de locomoção foram fundamentais para reduzir a propagação desse vírus letal e consequentemente, evitar o aumento do número de internações e mortes (WERNECK, 2021). O Covid-19 é a doença causada por uma nova espécie de coronavírus, denominado SARS-CoV-2, que pertence a uma família de vírus que já circulava no Brasil e era responsável por grande parte dos resfriados comuns.
Segundo (SILVA, 2019) a discussão acerca do conceito de liberdade é bastante ampla dentro da filosofia e ao longo da história assumiu diferentes contornos que superam a própria etimologia da palavra e se estende tanto no campo teórico, como nas implicações pragmáticas, nos domínios no campo da ética, da política, ontologia. Conforme descrito pelo autor:
“O conceito de liberdade vem do termo grego eleuthería e designa, com efeito, o homem livre (MORA, 2001; GOBRI, 2007). Em latim, a etimologia da palavra liberdade está relacionada ao adjetivo liber (deriva de liberto), o qual se aplica ao “homem em que o espírito de procriação encontrasse naturalmente ativo” (MORA, 2001). Assim, a concepção de liberdade, em latim (libertas), pode ser definida como a condição daquele que é livre, a capacidade de agir por si mesmo, a autodeterminação, a independência ou a autonomia (JAPIASSU e MARCONDES, 2006).”
René Descartes (1596-1650) expressou que a liberdade é estimulada pela própria decisão do indivíduo. O desafio consiste em saber quais são os limites dessa liberdade e quais os fatores que vão limitar essa autonomia do indivíduo.
Considerando o nosso contexto pandêmico, é possível verificar de modo explícito a atuação do estado no sentido de limitar a autonomia e a liberdade individual por meio de medidas restritivas de distanciamento social. No artigo 5º, inciso II, da Constituição Brasileira de 1988, está disposto que: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei”. Nesse sentido, uma série de normas foram publicadas e limitaram a liberdade de ir e vir de muitos brasileiros através das medidas restritivas como por exemplo a imposição do isolamento e da quarentena.
Esse cerceamento da liberdade se justifica num cenário que envolve a existência de um vírus altamente contagioso, letal e que desobedecer a certas restrições implicam numa maior propagação da doença que tem como consequência as mortes em massa e a saturação do sistema de saúde. As pessoas precisaram se adequar às novas diretrizes que impunham adoção de novas condutas, como por exemplo, o uso de máscaras e a manutenção do isolamento social.
Mediante ao exposto, este trabalho propõe a apresentar os modos como a pandemia e as medidas para seu enfrentamento representam desafios para a compreensão moderna da autonomia individual, especialmente para a sacralização dos direitos de liberdade. Para tanto, objetivou com o presente estudo discorrer acerca da autonomia e liberdade no contexto das estratégias de enfrentamento provocadas pela Covid-19.
2. DESENVOLVIMENTO
Até o início das restrições decorrentes da pandemia causada pela COVID-19 em 2020, Faria (2021) postulou que havia pouca discussão ao que tange as restrições à liberdade, cuja questão permeava com frequência o âmbito do direito criminal. No entanto, Segundo Almeida (2021), a questão possibilitou diretrizes sem precedentes com a rápida disseminação da Covid-19, onde medidas de segurança foram estabelecidas como um método eficaz para conter a propagação do vírus, por meio de imposição ao isolamento recomendado pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Segundo (JAPIASSÚ, et al. 2020):
[...]embora a regra seja a plena possibilidade de gozo e exercício dos direitos fundamentais em tempos de pandemia, o interesse público pode exigir a adoção de medidas que atendam à proteção das liberdades, dada a intensificação do Poder Policial do Estado. Existem, por exemplo, restrições à liberdade de circulação (desde o encerramento de estradas e fronteiras até a proibição de sair de casa sem justa causa); à liberdade religiosa (restrição à prática de cultos em templos religiosos); de reunião; bem como restrições aos fundamentos e princípios da ordem econômica constitucional, como a busca do pleno emprego (SANTOS, 2020, p. 27).
Desse modo, Siqueira e Carneiro (2020), pontuam que na luta contra o cenário pandêmico e com a adoção de inúmeras restrições por parte do Poder Público, é vislumbrada a tentativa de regular uma situação nunca experimentada nos tempos modernos; e que envolve a suspensão de direitos e garantias fundamentais, o que tem gerado desafios no campo jurídico e político.
No que diz respeito a autonomia e a liberdade, Mascaro (2020) dispõe que mediante as situações de contingência tais princípios devem obedecer ao princípio da necessidade. Portanto devem ser flexíveis e adaptáveis a cada momento e em face de contextos específicos, na sua eficácia, proporcionalidade e precaução, avaliando os impactos benéficos que os justificam, mas também os seus potenciais efeitos nocivos, respeitando os princípios da não maleficência (SIQUEIRA; CARNEIRO, 2020).
O debate acerca da autonomia e da liberdade está juridicamente inserido na discussão do fenômeno de colisão de direitos fundamentais. As escolhas políticas também são resultados de disputas que privilegiam alguns direitos em detrimento de outros. Um exemplo dessa colisão de direitos no contexto pandêmico foi a limitação do direito de locomoção em face da proeminência do direito à saúde. Segundo o disposto no art. 5º, XV, da Constituição Federal “é livre circular no território nacional em tempos de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, entrar, ficar ou sair com os seus bens”. (BRASIL, 1988). No entanto, a Lei 13.979 sancionada em fevereiro de 2020 (conhecida como “Lei da Quarentena”), impôs limitações a esse direito de locomoção ao possibilitar a adoção de medidas restritivas como o isolamento e a restrição excepcional e temporária de entrada e saída do País, conforme recomendação (Anvisa), para salvaguardar o direito à saúde.
Brandão (2021, p. 93) ilustra que:
A extraordinária situação de calamidade pública convida-nos a rever a valorização do peso dos direitos fundamentais no caso concreto, face à mudança repentina e violenta da conjuntura política, econômica e social, face ao caráter obrigatório dinâmico e casuístico da técnica de equilíbrio.
Para Matos (2021), o direito fundamental à liberdade assume novos contornos, com uma atrofia temporária imposta pela obrigatoriedade de adoção de medidas sanitárias preventivas, acompanhada da atribuição de maior peso à liberdade factual ou real. A Constituição Federal (CF) de 1988 prevê o amparo jurídico para a adoção de medidas que visam proteger a saúde pública. A Lei 13.979/2020 tem por base constitucional o art. 196 da CF, que dispõe:
A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantida por meio de políticas sociais e econômicas que visem a redução do risco de doenças e demais agravos à saúde e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação (BRASIL, 1988).
Saindo da esfera de incidência individual sobre as consequências das limitações da autonomia e da liberdade e entrando na esfera institucional, o caso Brasileiro é bastante complexo e trouxe muitas discussões acerca dos limites de atuação no combate à pandemia dos três poderes e do governo federal em face aos governos estaduais. Ainda que a Constituição Brasileira preveja um desenho institucional que limita a atuação de cada poder, diante da omissão do governo federal o plenário do Supremo Tribunal Federal deu autonomia a Estados e municípios para determinarem medidas de isolamento social e enfrentamento ao novo coronavírus, considerando o contexto local.
Em maio desse ano, o presidente Jair Messias Bolsonaro, por meio da Advocacia Geral da União, entrou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal contra as ações de contenção aos avanços do coronavírus dos governos de Pernambuco, Paraná e Rio Grande do Norte. Segundo a Advocacia Geral da União:
“o intuito da ação é garantir a coexistência de direitos e garantias fundamentais do cidadão, como as liberdades de ir e vir, os direitos ao trabalho e à subsistência, em conjunto com os direitos à vida e à saúde de todo cidadão, mediante a aplicação dos princípios constitucionais da legalidade, da proporcionalidade, da democracia e do Estado de Direito.”
Para além das implicações políticas e jurídicas precisamos analisar as questões sociológicas que decorreram desse contexto pandêmico no que diz respeito à liberdade e autonomia. É interessante as reflexões da filósofa francesa Claire Marin sobre o assunto. A autora se dedica a analisar os impactos das doenças e outras perturbações que testam nossas concepções ou modos de vida. Em entrevista ao jornal El País, ao ser questionada sobre a sociedade cada vez mais individualista ser uma miragem responde:
Talvez sejamos muito menos individuais do que pensávamos. Também descobrimos nossa dependência material, vital, inclusive as pessoas que se achavam muito autônomas e independentes.
Nesse sentido Mello (2021) ainda esclarece que:
A pandemia mostrou que as pessoas são menos individualistas do que elas pensavam, pois os vínculos com os outros se restringiram grandemente. Fazendo com que os indivíduos evidenciassem que eles são seres sociais; e necessitam se relacionar com outras pessoas. Foi possível ainda descobrir suas dependências materiais, vitais, inclusive por indivíduos que se achavam totalmente independentes (MELLO, 2021, p. 28).
Segundo Mascaro (2020, p. 76), "talvez esse fenômeno de individualismo, sobre o qual se fundou a modernidade ocidental, explique por que os países ocidentais tiveram tanta dificuldade em conter a pandemia em seus próprios territórios" (em comparação com os países asiáticos). Segundo o filósofo sul-coreano Byung Chul-Han em um texto escrito para o El País os países asiáticos estão lidando com a crise pandêmica com muito monitoramento de dados e um esforço coletivo de uso de máscaras e medidas sanitárias de modo mais efetivo que no Ocidente por conta de uma mentalidade coletiva (e autoritária) incutida nos países do Extremo Oriente há mais de mil anos pelo Confucionismo.
Para Nunes (2020), a Covid-19 no Brasil, acarretou uma grande ruptura do estado de normalidade na vida das pessoas, impactando as dimensões sociais, familiares e profissionais. Num nível existencial a filósofa Claire Marin mostra como o encarceramento nos leva a refletir acerca das nossas vulnerabilidades:
[...] De repente, descobrimos que estamos realmente vivos e que, portanto, o risco de morrer está sempre lá. É uma ideia defendida pelo filósofo Canguilhem, que dizia que estar vivo é o risco de ser mortal. Tendemos a nos esquecer disso por causa da confiança que temos na medicina. E com a Covid-19, podemos perceber que somos vulneráveis e que temos reconhecimento da apreciação pela saúde. Sendo que para apreciar a saúde, a obrigação sobre as medidas sanitárias viram uma oportunidade de sobrevivência.
Finalmente, acontece que o contexto pandêmico ensejou uma série de reflexões acerca do caráter individualista da modernidade. É a partir da ideia de indivíduo que derivam direitos e garantias individuais, que são tido como pilares fundamentais da nossa época. No entanto precisamos nos perguntar: o que é autonomia e liberdade? Quais seus limites? É possível falar em autonomia e liberdade num contexto social com tantas desigualdades? O fato é que as limitações impostas a autonomia e a liberdade individual foram fundamentais para conter a taxa de transmissão do vírus.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como a elaboração deste estudo, pode-se evidenciar que vários direitos foram mitigados durante o curso da pandemia Covid-19, porém, a garantia mais afetada pelo momento atual foi à autonomia de liberdade. Nesse sentido, a partir dos estudos expostos para fomentar o presente, percebe-se que a restrição ao direito de "ir e vir" é uma forma do Estado reduzir a propagação do vírus e, portanto, cumprir integralmente o disposto no artigo 196 da CF/1988, o que coloca como dever a redução das patologias. Além disso, o direito à saúde está intimamente relacionado ao direito à vida, também previsto na CF como um direito básico e fundamental de todos.
O resultado desse cenário pandêmico são as profundas mudanças na dinâmica de vida das pessoas que impactaram o sistema econômico, as relações de trabalho, as relações interpessoais, despertando muitas reflexões acerca dos limites da autonomia individual e como somos seres mais coletivos do que imaginávamos. Um vírus conseguiu revelar de uma forma bastante explícita que somos seres dependentes e o quanto essa ideia de autonomia individual é frágil.
Desse modo, concluiu que, durante uma grave pandemia global como esta, em que milhares de vidas ainda estão sendo perdidas diariamente, as vidas que permanecem devem ser priorizadas, restringindo, por enquanto, o direito à liberdade e investindo na ciência e na saúde pública. Sendo imperativo encontrar um equilíbrio para diminuir os danos. O cenário atual é delicado e é inegável a importância de políticas públicas eficazes neste momento para que seja possível restaurar a “antiga liberdade” como a possibilidade de ir e vir sem que isso implique diretamente na propagação de um vírus que resulta na morte de tantos indivíduos.
4. REFERÊNCIAS
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