A soberania do povo: uma soberania de fachada ou apenas uma soberania do passado?

Autores: Luís Felipe Alves e Arthur Benetele

Pode-se dizer que a soberania do povo teve sua semente plantada quando Thomas Hobbes colocou, na autonomia individual das pessoas, a autoridade original do poder soberano dos reis. Autoridade antes entendida como parte de algo natural, uma necessidade do ser humano de ser guiado (COSTA, 2020). Rousseau, por sua vez, foi além e transferiu a soberania do Estado (ou governante) para o povo. Esta soberania, ainda ilimitada e absoluta, seria exercida diretamente pelo povo (COSTA, 2011), embora esta execução não tenha sido muito bem explicitada, sendo difícil implementá-la.

Já no século XVIII, houve uma alteração na percepção moderna de soberania. Esta seria limitada, contudo a soberania popular deveria ser mantida. Um paradoxo. Entende-se que a soberania é realmente popular, entretanto, na prática, ela é transmitida, por meio do poder constituinte, a uma lei positivada absoluta (constituição), cujo cerne, a princípio, não pode ser modificado (a não ser por outra constituinte). (COSTA, 2011).

E, nos últimos dois séculos, viu-se a ascensão e a predominância do constitucionalismo como forma de limitar os poderes do governo. A constituição viria com o carimbo da legitimidade popular, o mais importante exercício da soberania do povo. Povo este que, de alguma forma, teria sido causa para a gênese de uma constituinte e cuja soberania, dali em diante, é enigmaticamente restringida pelo próprio texto constitucional.

Mas, afinal, quem seria este povo?

Podemos começar investigando pela primeira constituição formal escrita, a dos EUA. Elaborada na Convenção da Filadélfia em 1787 e ratificada em 1788, seu preâmbulo afirma que o “povo” a estabeleceu e a promulgou.

Fonte:https://static.america.gov/uploads/sites/8/2016/04/The-Constitutional-Convention_Portuguese_508.pdf (houve acréscimo do texto na imagem original)

Todavia, sabe-se que, nesta convenção e na votação da sua ratificação, quem participou foram os delegados dos estados. Estes representantes, por sua vez, tinham sido eleitos. Mas eleitos pelo povo? “What people” efetivamente pôde participar do processo?

Nos EUA da década de 80 do século XVIII, pode-se afirmar então que o significado de “povo” era bastante restrito. Mulheres, negros e pobres em geral não tinham direito a votar nos representantes (KEYSSAR, 2014). Portanto, a maior parte dos indivíduos foi excluído da deliberação. O suposto “povo” soberano arquiteto do primeiro texto constitucional era apenas parte da totalidade dos indivíduos, parcela esta composta basicamente por homens brancos das elites econômicas usuários de perucas.

Claro que não é totalmente justo criticar a legitimidade de um documento de tamanha importância para a contemporaneidade devido à realidade patriarcal racista de mais de 200 anos atrás. Contudo é um aspecto que não se pode olvidar, tendo em vista que vários direitos fundamentais, hoje básicos, foram omitidos no texto constitucional, como a abolição à escravidão (PAIXÃO, 2008), ou nem discutidos durante as atividades da convenção, como o sufrágio feminino. E isto muito provavelmente em razão do perfil da sua composição.

Mas então, o povo (em sua diversidade) realmente possui alguma soberania? Ou isto seria uma utopia? Ou uma história “de fachada” para controle das massas, uma forma mascarada de manutenção dos interesses das elites econômicas e políticas?

Fonte: https://pt.dreamstime.com/logotipo-do-los-pollos-hermanos-image134093929 (imagem original foi alterada). Obs.: Para quem desconhece, “Los Pollos Hermanos” é um fast food fictício da série televisiva Breaking Bad. O restaurante é utilizado como empresa de fachada para a realização de outros tipos de atividades.

Do século XVIII até a atualidade, centenas foram as constituições instituídas pelo mundo. Algumas promulgadas, outras outorgadas. Mas, em sua maioria, alegando possuir a legitimidade conferida pela tal soberania popular. Apenas no Brasil, tivemos sete. Quatro promulgadas (1891, 1934, 1946 e 1988), duas outorgadas (1824 e 1937) e uma aprovada pelo Congresso por pressão da Ditadura Militar (1967). Em todas, sem exceção, o “povo” é citado como parte de sua fundamentação legitimadora.

A constituinte da atual Constituição tem características dicotômicas. Havia situações problemáticas, como a existência de senadores originalmente não eleitos para tal e restrições estabelecidas por meio de emendas constitucionais anteriores, limitando assim o “poder constituinte originário” (e consequentemente a própria soberania popular plena).

Entretanto, foi também a primeira assembleia cuja eleição dos constituintes ocorreu com sufrágio universal. Ou seja, todos poderiam votar e, assim, participar, mesmo que indiretamente. Não só isso, houve uma intensa participação popular tanto nas manifestações para sua realização quanto da efetiva elaboração do texto constitucional.

“A grande inovação do processo constituinte de 1987-1988 reside em sua abertura à participação da sociedade civil e dos cidadãos em geral [...]. A abertura da Constituinte [...] foi conquistada após a aplicação de intensa pressão popular sobre o Congresso, cujo ápice se deu entre 1984 e 1985 [...]. Em 1987, a mobilização popular para exercer influência sobre os parlamentares era uma prática que havia adquirido certo grau de maturidade e articulação nos movimentos organizados” (BARBOSA, 2012)

Imagem à esquerda: https://pt.wikipedia.org/wiki/Diretas_J%C3%A1. Imagem à direita: https://www.camara.leg.br/internet/agencia/infograficos-html5/constituinte/index.html

Tais aspectos da Constituição de 88 demonstram uma evolução significativa, num sentido mais plural de povo, quando comparada à americana e às próprias brasileiras anteriores. Apesar da história constitucional brasileira alternar entre momentos autoritários e democráticos, é motivo de satisfação que, nesta última virada, foi possível uma participação popular bem mais expressiva.

Agora, será que este tipo de comparação histórica é filosoficamente adequada para analisar o “povo” detentor desta soberania? Pois o núcleo do paradoxo inicialmente abordado no post persiste. Se a vontade popular é limitada após a promulgação da Constituição, onde (ou quando) estaria essa soberania do povo? Este suposto povo é apenas o contemporâneo da assembleia constituinte? Se for realmente desta forma, temos uma contradição entre democracia (no sentido de soberania popular) e constitucionalismo.

“[...] puede verse que el constitucionalismo es esencialmente antidemocrático. La función básica de una Constitución es separar ciertas decisiones del proceso democrático, es decir, atar las manos de la comunidad.” (HOLMES, 1999)

Para destrincharmos tal paradoxo é necessário fazer uma distinção clara entre a ideia de conceitos e de objetos, uma vez que a elucidação desses termos eliminará qualquer confusão relacionada ao emprego conceitual ou histórico de um termo. O objeto é compreendido como a impressão empírica, apreendida e filtrada pelo intelecto humano, o processo de intuição. O conceito, por sua vez, demonstra a reunião e a generalização da empiria em um termo, dotado de significado e passível de comunicação (KANT, 1997).

Fonte:https://tsuisauchi.github.io/2019/11/17/Kant/ Obs: foto demonstra o intelecto humano, responsável pela filtragem e apreensão dos dados empíricos.

Os conceitos representam abstrações de objetos, de acontecimentos, de mudanças. Nesse sentido, o termo povo, como qualquer outra palavra ou expressão, carrega consigo um teor semântico próprio, porém histórico, e portanto mutável, definido em cada época por um consenso comunicativo dos indivíduos. O povo, simbolicamente, representa um conceito, cuja definição é pautada em outros conceitos e ostenta, portanto, certa universalidade e imutabilidade. É o povo em seu sentido amplo, comumente empregado nos silogismos e nas justificações de cunho jusnatural e jusracional. Em contraponto, o povo, historicamente, representa diversas experiências particulares, desprovidas de conexão entre si, é o seu sentido estrito.

A partir dessa explicação, podemos observar que povo é um termo multifacetado. Para o nosso problema em questão, não podemos aceitar nem seu aspecto simbólico nem seu aspecto histórico para validar o fenômeno constitucionalista e a questão da soberania, sob o risco de incorrer em imprecisões, tendo em vista que cada povo, de fato e nas definições de certos filósofos, lida com o processo constituinte e com o poder soberano de formas distintas. Ademais, comete-se falácias lógicas, tais como derivações de aspectos normativos para aspectos factuais, ou  mesmo generalizações apressadas, caracterizadas por um formalismo e universalização infundados.

Faz se necessário, portanto, reunir ambas a historicidade e a simbologia do termo povo, no intuito de fortalecer o conceito, nos âmbitos teórico e prático, enquanto ferramenta aqui empregada, e de sanar as imperfeições e perguntas colocadas anteriormente. Ou seja, entender o povo enquanto fenômeno histórico fundamentado em uma racionalidade própria. Movimento esse que ocorreu ao longo dos séculos, desde os contratualistas como Hobbes, Locke e Rousseau, até a teoria pura de Kelsen e o decisionismo de Schmitt.

O povo, ao ser caracterizado como soberano, opera, ao mesmo tempo, como instrumento e como razão da existência da autoridade baseada numa norma constitucional. Instrumento, pois, o poder popular fornece ao poder político legitimidade e perpetuidade; e razão, pois, o poder político demanda uma fundamento hierárquico para sua existência, no caso o povo.

Note que tal fundamento de validade do poder político necessita de uma justificação lógica e racional. O silogismo de que o poder político É legítimo, pela razão de DEVER SER, em si, necessário (HUME, 2000) ao povo, é uma falácia lógica, denominada lei de Hume. Há uma mistura entre o reino dos fatos com o reino dos deveres. A simples existência do texto constitucional ou da autoridade não pode ser justificado ou derivado de uma soberania popular, destituída de teor empírico, composta somente por artifícios retóricos, que buscam configurar uma concepção ideal de povo e de soberania e uni-las.

Fonte: https://rainhastragicas.com/2016/08/08/o-suplicio-dos-corpos-parte-i/ Obs: Foto representa uma guilhotina, em referência ao termo Guilhotina de Hume

Tal problema, também é enfrentado por Kelsen ao estabelecer a ideia de norma hipotética fundamental. Uma ordenação simples a qual exige que obedeçamos a constituição, que fornece validade à norma máxima da sociedade (KELSEN, 2003). Ainda que uma normativa rústica, comparada às teorizações que enxergam na soberania popular o fundamento constitucional das sociedades, a norma hipotética fundamental, demonstra um avanço, no sentido de superar a guilhotina de Hume, uma vez que, ainda que dotado de muito normativismo, busca na ideia legalista, de teor muito mais fático que a soberania popular, os preceitos de respeito às normas e às autoridades constituídas comuns às sociedades europeias do século XX.

Portanto, a concepção de povo se desenvolveu no sentido de abandonar as teorizações excessivas, e aproximar-se dos fatos históricos, ao desenvolver os conceitos de poder constituinte latente e originário. Em consonância ao avanço das ideias de democracia e governo representativo, a ideia de povo e de soberania passaram a ser associadas com a noção de que a soberania popular, embora permanentemente latente, exclusiva e intrínseca ao povo no aspecto histórico, (também denominada de poder constituinte latente) seria transmitida à uma Assembleia Constituinte eleita em dado período histórico, empoderada com o poder constituinte originário, e encarregada de elaborar um texto constitucional. Tal texto limita a atuação empírica da soberania propriamente popular, contudo o poder constituinte latente, enquanto conceito, não se sujeita à normatização positiva alguma, e está sempre presente.

Nesse ínterim, o constitucionalismo encontra validade no povo, entendido enquanto fenômeno histórico com racionalidade própria, e não mais em abstrações que incorrem em falhas lógicas. Além disso, o paradoxo da soberania popular é, de certa forma, superado ao concebermos a ideia de poder constituinte latente, que reside no âmbito teórico, sempre ávido para se libertar, coexistente a um poder constituído vigente, no âmbito prático, munido de validade, legitimidade e ferramentas para a autorregulação e alteração, observando os preceitos da democracia liberal (vide poder constituinte derivado).

Obs: Foto apresenta o protagonista da série Breaking Bad em um diálogo com sua esposa, demonstrando firmeza, convicção e soberba em relação aos acontecimentos ruins que estavam por vir.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARBOSA, Leonardo Augusto de Andrade. História constitucional brasileira: mudança constitucional, autoritarismo e democracia no Brasil pós-1964. Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2012.

COSTA, Alexandre. A invenção da soberania. Arcos, 2020.

COSTA, Alexandre. O poder constituinte e o paradoxo da soberania limitada. Teoria e Sociedade, n. 19, v. 1, 2011.

KELSEN, Hans. 2003. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes.

KEYSSAR, Alexander. O direito de voto: a controversa história da democracia nos Estados Unidos. Trad. Márcia Epstein. São Paulo: Unesp, 2014.

HOLMES, Stephen. El precompromiso y la paradoja de la democracia. In: ELSTER, Jon; SLAGSTAD, Rune (Org.). Constitucionalismo y democracia. Tradução Mônica Utrilla de Neira. México: Fondo de Cultura Económica, 1999

HUME, David. Tratado da Natureza Humana. Tradução de Débora Danowiski. Livro III, Parte I, Seção II. São Paulo, Editora UNESP, 2000

KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Tradução de Manuela Pinto dos Santos; Alexandre Fradique Morujão. 4.ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1997.

PAIXÃO, Cristiano. História constitucional inglesa e norte-americana: do surgimento à estabilização da forma constitucional. Brasília: Universidade de Brasília, 2008.