A persistência da tradição
Embora simplista, a divisão do espectro ideológico entre de direita e de esquerda pode contribuir, ao menos, para a compreensão acerca da forma de atuação do governo, particularmente quando o debate envolve a oposição entre uma perspectiva mais tradicional e uma mais intervencionista [1].
Como um proxy histórico interessante pode-se pensar na oposição entre as ideias de Thomas Paine e de Edmund Burke [2]. De fato, ambos os pensadores têm suas posições frequentemente associadas, respectivamente, mais à esquerda e mais à direita do referido espectro: enquanto Burke é considerado o pai do conservadorismo político moderno, Paine é lembrado por suas contribuições retóricas aos esforços das revoluções americana e francesa.
Nenhum dos dois filósofos nega a importância da mudança para o atingimento da justiça e para o bom convívio entre os homens. As sociedades mudam e as suas instituições, bem como o modo de interagirem, devem acompanhá-las. Isso é muito claro para Paine, que advoga por mudanças estruturantes com o objetivo de promover a melhoria da sociedade o quanto antes. Afinal, o direito se presta a servir aos homens: se ainda não há uma justiça objetiva, a tradição deve se curvar à mudança o quanto antes para alcançar esse ponto. Para Burke, contudo, as mudanças devem ser graduais e precisam ocorrer em condições bem específicas que as justifiquem. Por exemplo, apesar de contrário à revolução francesa, Burke defendeu a revolução americana. Isso porque ela teria sido motivada pela negação por parte dos ingleses de sua própria tradição: a necessidade da representação para a taxação; um direito da terra que sempre fora gozado por todos os ingleses (lembrando que à época da revolução, ambos os lados eram majoritariamente formado por súditos do Rei).
Embora não seja exatamente o cerne do pensamento desses filósofos, cotejar as ideias de Paine e Burke pode servir como um bom ponto de partida para conduzir a reflexão entre as diferentes perspectivas da atuação governamental. Trata-se de um debate absolutamente atual. Não há qualquer consenso sobre a forma ideal da atuação do governo. Aliás, a própria forma de concepção da alteração das tradições pode levar a ideias muito díspares. No que consistiria uma intervenção governamental na tradição? Seria no sentido de alterá-la ou de reforçá-la? Os efeitos são profundamente distintos e uma discussão em tese dificilmente seria capaz a chegar em alguma resposta conclusiva.
Há momentos em que as mudanças nas tradições são necessárias e urgentes, mas o que torna estas mudanças mais facilmente possíveis de acontecerem é o fim comum buscado pelas diversas partes interessadas, como na formação de uma constituinte, ou, de forma menos radical (mas também agressiva), numa mutação constitucional [3] - alteração da compreensão da constituição ao longo do tempo em razão de mudanças sociais, políticas e econômicas -, o que não ocorre quando os interesses são conflitantes, muito menos quando são opostos.
Os recentes eventos ocorridos, principalmente nos Estados Unidos, não deixam dúvidas quanto à natureza da oposição entre demandas: há claramente uma parcela da sociedade que milita a favor de uma alteração da tradição; da lógica como aquela nação é estabelecida. Esse é um debate que não se encerra nos Estados Unidos, sendo muito apropriado para diferentes nações, particularmente o Brasil.
Assim como Paine e Burke embora concordassem sobre a necessidade de alteração da atuação governamental, discordariam contundentemente da magnitude e taxa (e em certas searas, também no sentido) com que isso deva se dar. Também na contemporaneidade os partidários de uma postura mais tradicional e os de uma postura mais intervencionista apresentam suas discordâncias muito claramente.
Os partidários da tradição, muitas vezes se ancoram numa concepção mais estabelecida de família, de religião, de costumes. Para eles, é importante que o estado se abstenha, na medida do possível, de intervir sobre esses valores e preceitos para que preservem a acepção que “sempre” tiveram, mantendo o status quo. A lógica subjacente a essa linha de ideias decorre do fato de ser esse o estado de coisas que trouxe a sociedade até o ponto em que se está. E de que isso é fundamentalmente bom, pois fora da civilização só há guerra, dor e sofrimento. Apostar numa mudança radical, portanto, pode ser a forma de se colocar tudo (ou pelo menos mais que o necessário) a perder.
Já os partidários da intervenção do governo no sentido de alterar a tradição apostam na possibilidade de a mudança atuar sempre no sentido do progresso, da melhoria da sociedade, das condições dos cidadãos. Eles até concordariam com os mais tradicionais de que a tradição trouxe a sociedade até este ponto, mas para eles isso é mais visto como uma fraqueza do que como uma força do argumento. Para justificar isso, apontam para a inegável existência de injustiças e de sofrimento no mundo. A tradição teria sido o que gerou o sofrimento, havendo, assim, de ser mudada.
Uma analogia culinária pode contribuir para a compreensão das posições. Uma cozinheira pode ter aperfeiçoado, ao longo dos anos, sua receita para um bolo de chocolate. Ela chegou àquela receita por meio de pequenas mudanças nas diferentes iterações: mais ou menos açúcar, mais ou menos fermento, maior ou menor temperatura… Essa é a forma tradicional de pensamento. Uma forma mais progressista seria testar uma receita de um chef confeiteiro bastante diferente daquilo que a cozinheira está acostumada a fazer. Para os tradicionalistas, corre-se o risco de o bolo simplesmente não funcionar. Para os progressistas, o bolo será melhor. Trata-se, portanto, de um claro sopesamento de valores. Estaria o bolo ruim o suficiente para se alterar a receita? Ou ele está suficientemente bom para que não se arrisque queimá-lo ao tentar uma nova tecnologia confeiteira?
Os atuais movimentos sociais americanos parecem sugerir que substancial parcela da população abomina o bolo atual. De fato, se o bolo é mesmo intragável, há muito pouco incentivo a colocar só um pouco mais de farinha: é necessário trocar a receita. Sendo isso verdade, o governo tem uma importante missão de atuar sobre a tradição para melhorar a receita.
Por exemplo, a remissão a símbolos confederados na bandeira oficial do estado do Mississippi [4] era uma tradição do estado. Mas remetia a um bolo muito amargo para grande parte de seus cidadãos: lembrava da luta em favor da escravidão, em um estado com substancial parcela da população negra. A solução foi uma intervenção governamental no sentido de se alterar a bandeira do estado, com uma receita completamente nova. Embora o exemplo dado possa parecer pacífico para a maioria das pessoas, nada é tão simples. Primeiro porque muitas das pessoas que defendiam a bandeira anterior, a tradição, não o faziam pela herança da escravidão, mas por um sentimento de pertencimento quase que nacional (lembremos que os Estados Unidos nasceram de uma confederação num movimento centrípeto e que, portanto, as bandeiras estaduais são símbolos muito mais caros a eles do que as nossas). E ainda que, mesmo assim, considere-se o exemplo como um caso de escolha simples, lembremos que é só um exemplo: naturalmente, em outros casos a escolha do caminho a ser trilhado é muito mais difícil. Queremos atacar a tradição de autorizar ou proibir o aborto? Queremos alterar a tradição de brasileiros não andarem armados nas ruas como texanos? Queremos diminuir a tradição de liberdade religiosa por algum motivo? Em geral, queremos que o governo, por algum motivo, extinga algum direito para proteger bem jurídico tradicionalmente estabelecido que se repute mais valioso em dada conjuntura e por quem detenha o poder de fazê-lo?
Seja como for, fato é que movimentos como Black Lives Matter parecem ser representativos de uma concepção mais próxima da de Paine do que da de Burke, e ela parece prevalente nos Estados Unidos. As iminentes eleições naquele país funcionarão como um plebiscito entre as duas visões e servirão de indicativo se essa impressão será, de fato, observada na prática.
[1] COSTA, Alexandre. Natureza x Governo. Arcos 2020.
[2] CANAVAN, Francis. The Burke-Paine Controversy. The Political Science Reviewer 6, 389, 1976.
[3] MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de direito constitucional / Gilmar Ferreira Mendes, Paulo Gustavo Gonet Branco. – 12. ed. rev. e atual. – São Paulo : Saraiva, 2017.
[4] OREY, Byron D’Andra. White racial attitudes and support for the Mississippi state flag. American Politics Research 32, 102, 2004.