A ordem natural

Autores: Alan Alves Ferro, Anna Beatriz Fontes Pacheco, Eduarda Souza Dantas Martins Torres, Karine Soares Martin da Silva, Marcos Roberto Medeiros e Vítor Imbroisi Martins.

Nas palavras de Alexandre Costa1, os humanos, ao longo de muitos anos, cultivaram a ideia da existência de uma ordem natural - cosmos, tao ou outra - ordem essa que possui uma “dimensão normativa (nomos, li, dharma, jus) que deve ser estritamente observada pelas comunidades humanas”. Sua ruptura provocaria o caos, violência e desordem, por imposição do divino, da inevitabilidade do destino ou pelo o que seria o fluxo natural dos acontecimentos.

Para Alexandre Costa2, essa tal ordem natural passou a incluir a obediência aos governantes desde a sua criação. Em verdade, a invenção dos governos teria propiciado a divisão entre governantes e governados, revolucionando a antiga ordem natural que possibilitava aos valores tradicionais de uma dada comunidade serem tidos como naturais. O professor alega que nesse cenário formou-se “uma tensão constante entre dois princípios da ordem natural: a obediência à tradição e a obediência ao governante”.

As teorias políticas passaram a se debruçar sobre o tema. Alexandre Costa3 bem observa que Thomas Hobbes tentou anular essa tensão, propondo um primado do governo sobre a tradição. Todavia, a naturalização da tradição ainda era marcante. John Locke, que fez uso da “estratégia hobbesiana de justificar contratualmente os poderes do governo”, recorreu à naturalização da tradição como freio aos governantes em prol dos limites constituídos pelo direito natural.

Para o Professor, o constitucionalismo trouxe equilíbrio entre elementos modernizantes e tradicionais. O homem é tido como sujeito naturalmente autônomo, onde se admite uma ordem normativa natural enquanto fonte de “direitos naturais e inalienáveis dos quais nos fala a declaração dos direitos do homem e do cidadão”. Contudo, não se pode falar que o constitucionalismo sepultou o ambiente de tensão entre os ditames da tradição e do governo.

Exemplo pode ser extraído do momento atual vivenciado no Brasil. Eis que ganha fôlego o debate envolvendo inúmeras questões acerca da nova vacina contra a Covid-19 - que sequer venceu as fases de confirmação para o trânsito regular de seu registro pela autoridade sanitária. Há quem indague se existe o direito dos pais de não vacinar os filhos ou de não se vacinar. Argumento frequente aos que respondem positivamente o questionamento é de que o Estado não pode ignorar as crenças individuais e os valores tradicionais da família para impor uma vacinação obrigatória. De outro lado, estão os que afirmam que se um bem comum está em jogo, o interesse coletivo deve ter prioridade sobre o interesse individual, o que justificaria a vacinação compulsória como medida de combate à pandemia.

É claro que esse é um debate que envolve a tutela de diversos direitos e vai além da questão da pandemia da covid-19. Não por menos, o assunto foi parar no STF. Após decisão do Presidente Jair Bolsonaro de interromper acordo anunciado pelo Ministério da Saúde para a compra de 46 milhões de doses da vacina contra a Covid-19, produzida pela parceria Sinovac-Butantan4, foi proposta a ADPF 756 solicitando que o Executivo Federal informe, em prazo máximo de 30 dias, os planos e o programa relativos à vacina e aos medicamentos contra a Covid-19, incluindo cronogramas, ações de pesquisa ou desenvolvimento próprio ou em colaboração, tratativas, protocolos de intenção ou de entendimentos e a previsão orçamentária e de dispêndio5.

Para os autores da mencionada Ação, a afirmação de Bolsonaro de que não irá adquirir a “vacina chinesa”, ao mesmo tempo que em que reservou crédito de R$ 1,9 bilhão para celebração de contrato entre a Fundação Oswaldo Cruz e a empresa farmacêutica AstraZeneca, com vista à aquisição da vacina de Oxford, “revela conduta incompatível com as elevadas responsabilidades do cargo e apta a caracterizar flagrante desvio de finalidade”6. O Presidente Bolsonaro reagiu afirmando que “não pode um juiz decidir se você vai ou não tomar vacina. Não existe isso daí”7. Em sua rede social, afirmou ainda: “vacina obrigatória só aqui no Faísca”, um cachorro8.

Como podemos perceber, a ordem natural não leva a um desenvolvimento linear da sociedade, mas pode ser considerada cíclica, pois a história se repete ao longo do tempo. Um exemplo é que discussões semelhantes as que vivenciamos hoje ocorreram no Brasil em 1904, na chamada “Revolta das Vacinas”.

A cidade do Rio de Janeiro, com cerca de 800 mil habitantes, sofria, em 1904, com diversas doenças que assolavam a população e eram objeto de preocupação dos governantes, como tuberculose, peste bubônica, febre amarela, varíola, malária, tifo, cólera9.

O então presidente, Rodrigues Alves, nomeou Oswaldo Cruz, diretor geral de Saúde Pública, a quem coube a missão de promover um saneamento na cidade do Rio de Janeiro e erradicar a febre amarela, a peste bubônica e a varíola. Com este intuito, em junho de 1904, o governo fez uma proposta de lei que tornava obrigatória a vacinação da população. Mesmo com 15 mil assinaturas contrárias, a lei foi aprovada no dia 31 de outubro daquele ano10.

Sob o comando de Oswaldo Cruz, a já impopular lei sofreu uma drástica regulamentação, em que exigia-se comprovantes de vacinação para realizar matrículas nas escolas, assim como para obtenção de empregos, viagens, hospedagens e casamentos. Previa-se também o pagamento de multas para quem resistisse à vacinação. O povo indignado e contrariado deu início a maior revolta urbana que já tinha sido vista na capital11.

Destaca-se, entretanto, que há uma grande diferença entre o episódio de 1904 e o que estamos vivendo agora: naquela época o governo de Rodrigues Alves se aliou à ciência e exigiu a vacinação em massa da população para erradicar as doenças que assolavam principalmente a capital do país, enquanto no momento atual há um movimento, inclusive no governo, que por vezes nega a existência da Covid-19 e, eventualmente, nega a eficácia das vacinas.

Outro recente exemplo que evidencia a incapacidade do constitucionalismo mediar os embates entre a tradição e o governo consiste na afirmação feita pelo presidente Jair Bolsonaro durante culto evangélico realizado na Câmara dos Deputados acerca das nomeações para o cargo de Ministro do Supremo:

"Muitos tentam nos deixar de lado dizendo que o estado é laico. O estado é laico, mas nós somos cristãos. Ou para plagiar a minha querida Damares: Nós somos terrivelmente cristãos. E esse espírito deve estar presente em todos os poderes. Por isso, o meu compromisso: poderei indicar dois ministros para o Supremo Tribunal Federal. Um deles será terrivelmente evangélico"12

Estudo feito pelo Datafolha13 em dezembro de 2019 aponta que 50% dos brasileiros são católicos e 31% evangélicos, o que evidencia a imposição pelo governo federal de valores tradicionais da sociedade. Nesse contexto, se torna ainda mais preocupante a afirmação de que "esse espírito deve estar presente em todos os poderes", posto que o judiciário, especificamente o STF, exerce o importante papel do controle de constitucionalidade, devendo ser assegurada a supremacia do texto constitucional, que prevê a laicidade do estado.

Apesar disso, vale lembrar, apenas a título de curiosidade, que pende da parede do Plenário da Suprema Corte um crucifixo, símbolo cristão que remete à crucificação de Jesus Cristo. Parece, ao que tudo indica, que o Supremo já é terrivelmente evangélico - ou ao menos cristão.

Uma das principais finalidades da ordem jurídica é o disciplinamento das relações sociais, a partir da prevenção de conflitos que venham a ocorrer na sociedade - como o exemplo dado quanto à obrigatoriedade ou não da vacina contra a Covid-19. Quanto a essa ordem jurídica ser natural ou ser posta pelo próprio ser humano, as discussões se desenrolam por décadas, reunindo distintas opiniões e diferentes argumentos.

Ao longo dos diferentes momentos históricos, ordem jurídica natural e ordem jurídica positiva revezaram-se na posição de preferência, cada uma tendo sobressaído à outra em um contexto histórico determinado. Assim, no período clássico, por exemplo, preponderava o direito positivo - tido como especial - quando havia controvérsias entre este e o direito natural, como é possível observar na obra de Sófocles - Antígona - , na qual o decreto de Creonte estava acima do direito natural posto pelos deuses14.

Ainda nesse contexto, o cenário inverte-se na idade média e o direito natural passa a ser visto como superior ao direito positivo, sendo compreendido não mais como o direito comum - em oposição ao direito positivo especial -, mas como a lei vinda do próprio Deus. Na idade moderna, por sua vez, o direito positivo passa a ser definido como direito em seu sentido próprio, ou seja, é como se o direito natural não fosse mais visto como direito.

É improvável que se possa prever todas as controvérsias que podem surgir em uma sociedade e, como consequência, é impossível criar leis que deem conta de disciplinar todos os conflitos possíveis e prováveis. À vista disso, quando não for possível que todos os casos concretos sejam contemplados pelas leis escritas, abre-se espaço para que a ordem jurídica natural atue, ou seja, apesar da codificação trazida pela ordem jurídica positiva, o direito natural permanece, conforme pode ser observado através dos artigos 4º da LINDB e 140 do CPC, os quais utilizam a norma jurídica natural quando ausente a norma positiva 15.

É fato que o Direito Natural foi, cada vem mais, sendo substituído por matérias técnicas, desde o século XIX, tornando-se menos relevante na prática jurídica contemporânea. Não obstante, conforme pontua o Professor Alexandre Costa16, as pessoas não deixaram de ser jusnaturalistas, vez que acreditam em um sistema de direitos decorrente da natureza das coisas, como a vedação da escravidão.

O processo de construção de um código que reunisse as leis de um determinado povo acabaram passando por essa mesma questão de mesclar o direito natural com o direito já positivado, ainda que essa não fosse a intenção. Alguns idealizadores e redatores de códigos que, inclusive eram jusnaturalistas, chegaram a acreditar que suas obras consolidavam as regras do direito natural, o que demonstrava a vitória do direito natural racionalista.

Não obstante, ainda que alguns dos autores do código tentassem manter a “existência” do direito natural”, a sua razão de ser foi sendo alterada quando da busca por racionalizá-lo. E, assim, com a evolução, o direito positivado foi perdendo o elo com o direito natural, vez que o discurso jurídico passou a ser reduzido gradualmente à sua face dogmática.

Este último direito tornou-se o que chamamos de métodos de integração das normas jurídicas, mecanismo que permite correções no ordenamento jurídico de forma a torná-lo completo em si mesmo, sem que, frente a determinada Lide proposta no Poder Judiciário, faltem respostas.

Nessa esteira, observa-se que o Direito Natural existe e continuará existindo na história do Direito, ainda que esteja mais "adormecido" e possivelmente passe despercebido. No entanto, isso não o impede de guiar o ordenamento e de ser uma ferramenta ativa, conforme vimos no artigo 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Ainda que possa ter saído de sua posição de destaque, o Direito Natural, assim como a ordem natural, vive e viverá, apesar de seus opositores e críticos ferrenhos.


NOTAS E REFERÊNCIAS

[1]    Costa, Alexandre. David Hume e a negação de uma ordem jurídica natural. Arcos, 2020a.

[2]    Idem.

[3]    Idem.

[4]    Folha de São Paulo. Bolsonaro esvazia acordo com o Butantan e acirra 'guerra das vacinas'. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/10/bolsonaro-esvazia-acordo-com-o-butantan-e-acirra-guerra-das-vacinas.shtml. Acesso: out. 2020.

[5]    Notícias STF. Cinco partidos acionam STF para que presidente da República seja obrigado a adquirir vacina contra Covid-19. Disponível em: http://stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=453981. Acesso em: out. 2020.

[6]    Disponível em: https://www.ayresbritto.com.br/wp-content/uploads/2020/10/ADPF-756.pdf. Acesso em: out. 2020. Ver ainda: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6035593.

[7]    G1. 'Não pode um juiz decidir se você vai ou não tomar vacina', diz Bolsonaro. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/10/26/nao-pode-um-juiz-decidir-se-voce-vai-ou-nao-tomar-vacina-diz-bolsonaro.ghtml. Acesso em: out. 2020.

[8]    Valor Econômico. Bolsonaro diz que vacina só é obrigatória para cães. Disponível em: https://valor.globo.com/politica/noticia/2020/10/24/bolsonaro-diz-que-vacina-s-obrigatria-para-ces.ghtml](https://valor.globo.com/politica/noticia/2020/10/24/bolsonaro-diz-que-vacina-s-obrigatria-para-ces.ghtml). Acesso em: out. 2020.

[9]    Revolta da Vacina. Disponível em: https://www.infoescola.com/historia/revolta-da-vacina/. Acesso em: out. 2020.

[10]    Idem

[11]    Idem

[12]    G1. Bolsonaro diz que vai indicar ministro 'terrivelmente evangélico' para o STF. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/07/10/bolsonaro-diz-que-vai-indicar-ministro-terrivelmente-evangelico-para-o-stf.ghtml. Acesso em: out. 2020.

[13]    G1. 50% dos brasileiros são católicos, 31%, evangélicos e 10% não têm religião, diz Datafolha. Disponível em: <https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/01/13/50percent-dos-brasileiros-sao-catolicos-31percent-evangelicos-e-10percent-nao-tem-religiao-diz-datafolha.ghtml. Acesso em: out/2020

[14]    LAMOUNIER, Micaela Afonso. O direito natural e o direito positivo e seu contexto histórico: lições de Norberto Bobbio. Revista Âmbito Jurídico. Disponível em: https://ambitojuridico.com.br/edicoes/revista-163/o-direito-natural-e-o-direito-positivo-e-seu-contexto-historico-licoes-de-norberto-bobbio/. Acesso em: out. 2020.

[15]     Cf. LINDB (Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro), art. 4º Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito. Ver ainda: CPC, art. 140 O juiz não se exime de decidir sob a alegação de lacuna ou obscuridade do ordenamento jurídico.

[16]    COSTA, Alexandre. O ocaso da filosofia do direito no século XIX. Arcos, 2020b.