A IMUNIDADE DO JUSNATURALISMO TOMISTA FRENTE ÀS CRÍTICAS KELSENIANAS

A partir da análise dos autores Oliveira e Lessa (2010), averigua-se que há uma tentativa de desvencilhar as bem fundamentadas críticas kelsenianas do âmbito de abrangência da teoria do direito de São Tomás de Aquino.

Inicialmente, a partir de um exame do texto “O problema da Justiça” (1998), é possível ilustrar a primeira incompatibilidade entre a noção de Direito Natural atacada pelo jurista austríaco e a concepção efetivamente defendida pelo Santo Católico. Dessa maneira, o texto em questão não dialoga expressamente com a doutrina tomista, já que, na verdade, o que se verifica é uma investida hermenêutica através da abordagem das obras de Kelsen, encabeçada pelos autores do texto em exame (2010), na tentativa de demonstrar a tese defendida.

Kelsen (1998) se insurge contra o idealismo que, segundo ele, permearia a noção de Direito Natural. A crítica, fundamentada na impropriedade de um direito ancorado em pretensas normas imutáveis e independentes do aspecto humano, não sobrevive à análise cuidadosa da obra tomista. Nessa conformidade, é necessário esclarecer a conclusão fundamental do texto em análise, que versa sobre a ideia de que o direito natural, vergastado por Kelsen, é, apesar de sua utilização genérica, limitado à sua concepção moderna. Paralelamente, Tomás de Aquino se escora nos autores clássicos e, sustentado pelo aristotelismo, empreende a construção de sua noção Jusnaturalista sob o prisma de uma perspectiva antropológica.

Sobre isso, Anthony Lisska afirma, com correção, que um dos pressupostos para se compreender a teoria naturalista de Santo Tomás é admitir a possibilidade de uma metafísica realista, consistente em uma verdadeira antropologia filosófica derivada de Aristóteles. Nesse sentido, Javier Hervada sustenta que a teoria de Santo Tomás de Aquino enquadra-se no realismo jurídico clássico, pois se refere às “coisas naturalmente adequadas ao homem”. Assim, “o direito natural é o justo ou adequado à natureza humana pela natureza das coisas” (HERVADA, 2008, p. 347).

À vista disso, fica claro o descompasso entre as concepções adotadas. Assim, tendo como parâmetro o juízo moderno sobre a prática do Direito, percebe-se o entrelaçamento dessa prática com o poder e a vontade de um soberano. Dessa constatação, sobressai a necessidade de um agente metafísico legiferante, o que reverbera na crítica da existência de uma inseparável religiosidade nesse contexto.

Na visão clássica, porém, esse entrelaçamento da prática jurídica com o exercício do poder vinculado à uma vontade do soberano não existe. O direito, para os autores clássicos, abraçaria diretamente as virtudes da justiça e da prudência, que, dessa forma, demandaria não somente um esforço interpretativo do aplicador, mas, também, um enquadramento privilegiado da realidade em si. Desse modo, há um evidente deslocamento do foco jurídico. (HERVADA, 2008).

A imutabilidade dessas regras não é, em geral, uma característica partilhada pela Doutrina Jurídica clássica, pois a concretização dessas normas dependeria, invariavelmente, da aplicação da razão prática ao caso concreto. Assim, segundo os autores:

Existe, sim, um núcleo inalterável formado pelo preceito primário e geral da Lei Natural, do qual derivam os demais princípios. O homem, na medida em que possui a capacidade inata de conhecer juízos práticos, capta, infalivelmente, esse princípio fundamental e imutável. No entanto, a partir desse primeiro preceito, o homem avalia, mediante a razão prática e, portanto, a posteriori e na concretude das condições nas quais realiza suas ações, as coisas como boas ou como más, conforme se dirigem ou não aos fins próprios do ser humano. (OLIVEIRA; LESSA, 2010, p. 120).

Nessa lógica, a distinção entre a razão prática e a razão especulativa é relevante, posto que a utilização daquela na construção da noção jusnaturalista clássica ilumina, de fato, a necessária variabilidade dessas normas e distancia a noção tomista das críticas kelsenianas.

Já no que tange à convivência entre o direito natural e o direito positivo sustentada pelos representantes da doutrina do direito natural, Kelsen (1998) aponta para a desnecessidade dessa concepção, posto que a imperiosa observância do direito natural seria descortinado pela mera análise da natureza, e não por uma necessária atividade dos legisladores.

Por outro lado, Tomás de Aquino defende a existência da Lei natural como ancoradouro das leis humanas, as quais não seriam imprescindíveis, tendo em vista a indeclinabilidade da especificação e capilarização dos regramentos de conduta. Essa especificação como concretização da Lei Natural, seria necessária, segundo o autor, para a realização da paz social, que não poderia depender de uma irreal conformação entre diferentes possibilidades interpretativas. (LISSKA, 1996).

O último alvo dos ataques kelsenianos é a muito divulgada “falácia naturalista”. O autor (1998) sustenta a impossibilidade lógica da dedução de normas a partir da observação da realidade, ou seja, do ser não deriva logicamente o dever ser.  Já sob o manto tomista, a natureza humana ganha uma nova roupagem. Em outros termos, novamente com o amparo da perspectiva de Aristóteles, Tomás de Aquino desbota a diferenciação entre o mundo fático e a ordem do dever ser, aduzindo o pretenso desdobramento daquele em valores objetivamente observáveis. Destarte, Oliveira e Lessa (2010, p. 126) assentem que:

Anthony Lisska (1996) desenvolve o mesmo argumento, sustentando que a dicotomia fato/valor não se adéqua à descrição clássica de Direito Natural, pelo fato desta implicar uma análise metafísica realista da natureza humana. Segundo Lisska (Idem, p. 199, tradução nossa), compreendendo a natureza humana como um conjunto de propriedades dinâmicas, direcionadas a determinados fins (bens), não se pode inferir que um valor foi derivado de um fato.

Por fim, é evidente que essa dificuldade de compreensão dos valores a partir do mundo do ser, ou, como dizem os autores (2010), da noção dinâmica da realidade, trata-se de produto da descontinuidade da noção de direito natural esposada pelos autores clássicos. O jusnaturalismo moderno, através dos variados caminhos pelo qual foi desenvolvido, prescinde dessa dinamicidade e acaba por abrir brechas para críticas como as de Kelsen. Essas críticas, porém, não se aplicam ao jusnaturalismo tomista, pois, como foi relatado, o autor austríaco direciona suas críticas para uma concepção diferente de Direito Natural.

Referências Bibliográficas:

HERVADA, Javier. Lições propedêuticas de filosofia do direito. Tradução Elza Maria Gasparotto; Revisão técnica Gilberto Callado de Oliveira. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2008.

KELSEN, Hans. O problema da justiça. Tradução João Baptista Machado. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

LISSKA, Anthony. Aquina’s theory of natural law: An analytic reconstruction. Oxford University Press, 1996.

OLIVEIRA, Júlio Aguiar de; LESSA, Bárbara Alencar Ferreira. Por que as objeções de Hans Kelsen ao jusnaturalismo não valem contra a teoria do direito natural de Tomás de Aquino? Revista de Informação Legislativa, a. 47 n. 186 abr/jun, 2010.