A “ideologia de gênero” como peça-chave na luta contra a “ordem natural”
“Se todos nascemos iguais, como podemos estar em uma situação de tal desigualdade nos dias de hoje?” (Rousseau)
Criado por lideranças religiosas católicas após a IV Conferência das Nações Unidas sobre a Mulher em Beijing, em 1995, o termo “ideologia de gênero” começou a ser utilizado para se referir à divergência entre as pautas feministas e os interesses dessas lideranças, motivo pelo qual foi disseminado pelo Vaticano nos anos de 1997 e 1998 como uma ameaça ao catolicismo e à definição de ser humano. (MISKOLCI, 2018, p. 4)
Posteriormente, a introdução do conceito de gênero acabou por proporcionar a inserção de demandas sobre direitos sexuais na agenda de direitos humanos e, especialmente no Sul Global, o sentimento de medo por parte dos religiosos católicos foi intensificado com o reconhecimento da união entre pessoas do mesmo sexo na Argentina, em 2010, e no Brasil, em 2011 (MISKOLCI, 2018, pp. 4-5). Inicia-se, assim, no contexto brasileiro, um embate entre conservadores, contrários à “ideologia de gênero”, e progressistas, em prol da “identidade de gênero” e de outros direitos sexuais emergentes na agenda de direitos humanos.
Apesar de o debate sobre ideologia de gênero estar em voga há pouco mais 25 anos, as tensões entre a tradição e a sua mudança existem há milênios, como na busca pela ordem natural pelo pensamento da Grécia antiga.
Desde a formação das sociedades antigas há uma tendência natural dos seres humanos de se reunirem em grupos, inicialmente familiares, posteriormente mais extensos como forma de mitigar riscos e excessos. Em decorrência do aumento da complexidade das sociedades com o passar dos anos, surge a necessidade de um governante, este era escolhido pelo prestígio e desenvolvia uma função social a fim de delimitar as regras de convivência de um povo. Embora o surgimento da figura do governante frente à sociedade tenha ocorrido de forma lenta, nos grupos familiares já existia uma aceitação da ordem natural das coisas, por exemplo, a naturalização do poder dos pais sobre os filhos e a submissão da mulher, estrutura esta que não era questionada.
Nesse sentido, a Cultura Chinesa entendia a ordem natural (li) como a própria tradição e os ritos tradicionais e, por isso, a legitimidade da fa (obrigações impostas pelo governante) dependia do respeito à tradição. Já a Cultura Grega contestou a equivalência entre ordem natural e tradição, distinguindo, assim, as tradições que são concordantes com a ordem natural imanente, isto é, com a physis e as que são contrárias a ela. Assim, nota-se que os gregos assumiram a possibilidade de uma tradição poder ser contra a ordem natural e até mesmo uma barreira, diferentemente dos chineses, que defendiam a tradição no geral. Nas palavras de Alexandre Costa (2021):
“Desde então, um dos pilares das reflexões sobre a política e o direito é justamente a distinção entre a ordem natural imanente (a ser conhecida racionalmente) e as tradições obscurantistas de um povo, que reproduzem preconceitos e precisam ser constantemente superadas por meio do exercício de uma política inspirada pela razão. A filosofia grega nos apontou a possibilidade de sair da caverna formada por nossas tradições, que distorcem o mundo e nos apresentam apenas simulacros, inaugurando um embate franco e aberto entre a racionalidade e a tradição, que competem entre si como critérios para o acesso à ordem natural que está na base de ambas as perspectivas.”
Em ambas as culturas, no entanto, o governo era entendido como ordem natural das coisas, a qual o revestia de legitimidade. A partir dos estudos do antropólogo Pierre Clastres, na década de 1970, levantou-se o questionamento acerca da imutabilidade da ordem natural das coisas, com a interpretação acerca da ordem natural e autoridade política a partir da observação das sociedades indígenas. Nesta perspectiva, a figura de chefe, liderança indígena, não está associada a autoridade vinculante, mas sim a orientações, as quais podem ou não ser acatadas pelo grupo. Nesse sentido, as pessoas teriam o poder de escolha e não dever de obediência.
A partir dessa concepção, a ideia de “naturalidade” e necessidade de governo passa a ser repensada e analisada a partir da desnaturalização do “natural”. Esse processo é parecido com o que ocorre nos dias atuais no debate sobre “ideologia de gênero”, na medida que se desnaturaliza o que outrora era visto como “natural” e desmistifica imposições do governo vinculado ao tradicionalismo na sociedade.
Nesse contexto, em que a superação da concordância entre naturalidade e tradicionalidade pela filosofia grega tem relação com o debate sobre ideologia de gênero?
O discurso promovido pelas lideranças religiosas católicas e neopentecostais no Brasil contra a denominada “ideologia de gênero” se firmou na defesa da tradição, sobretudo sob forte justificativa de proteção das crianças - não à toa os indivíduos ainda em formação e, em tese, menos influenciados socialmente no tempo (e, talvez por isso, mais influenciáveis) -, com a disseminação de inverdades como a do apelidado “kit gay” - material para o combate à discriminação LGBT que seria distribuído nas escolas (1).
Como justificativa para a defesa da tradição, não é incomum escutar dos conservadores que pessoas LGBTs são “anormais” e “contra a ordem natural das coisas ou a natureza”, pois Deus fez o homem e a mulher, a partir de um fundamento moral/religioso, majoritariamente construído sob o fundamento da crença cristã, que embasa os principais grupos que combatem a ideologia de gênero, como os católicos e neopentecostais supracitados. Outro argumento bastante suscitado, numa tentativa de se desvincular de uma visão moral/religiosa, é o que tenta atribuir um caráter pseudo-científico/biológico ao apontar que a existência de pessoas LGBTs é contra a ordem biológica, já que mulheres lésbicas e homens gays não podem ter filhos por meio de relações sexuais, tentando referenciar a reprodução como única validadora da sexualidade, ou da identidade de gênero.
Podemos também analisar a relação tradição versus ordem natural a partir de um ponto de vista de mudança constante na perspectiva de se aproximar cada vez mais de uma organização ótima da sociedade. Nessa busca pela aplicação de uma justiça objetiva, que permita o desenvolvimento das potencialidades humanas e assegure os direitos básicos, que se expandem em conteúdo cada vez mais, podemos apontar que há uma inércia da organização estatal que luta contra essa mudança constante e defende a tradição sob qual essa estrutura estatal se sustenta.
Essa inércia, isto é, a resistência das instituições, não era tão sentida quando a mudança social vinha a passos curtos, especialmente pela capacidade da democracia liberal capitalista atual, e de seu aparato burocrático de adaptação para manutenção do poder sobre a estrutura estatal. Porém, a evolução das pressões sociais, especialmente da pauta identitária e do ativismo LGBT, também atrelada a mudanças sociais que deram voz a grupos marginalizados, e inovações tecnológicas que amplificaram o volume e alcance dessas vozes, fez com que a pressão por mudanças se acelerasse de tal forma que a inércia institucional é sentida de forma cada vez mais forte, como na física, em que quanto maior a velocidade com a qual você atinge o objeto, maior a resistência que sofrerá dele.
A tentativa de resistência e repressão pelas instituições estatais, no entanto, não garante o apagamento dos direitos sexuais e de gênero, já que o Estado e os empresários morais necessitam levar o debate para o campo da linguagem, gerando, portanto, uma explosão de discursos sobre aquilo que se quer reprimir (FOUCAULT, 1996).
Francis Fukuyama apresenta sua visão sobre esse fato em The Origins of Political Order: From Prehuman Times to the French Revolution, que é bem resumida no seguinte trecho:
“Instituições políticas se desenvolvem, frequentemente de forma lenta e dolorosa, com o tempo, enquanto sociedades humanas se esforçam para se organizar e dominar seus ambientes. Mas a decadência política acontece quando sistemas políticos falham em se ajustar a mudanças de circunstâncias. Há algo como uma lei de conservação das instituições. Os seres humanos são, por natureza, animais seguidores de regras; eles nasceram para se conformar a normas sociais que veem ao seu redor, e frequentemente internalizam essas regras com significados e valores transcendentes. Quando o ambiente ao seu redor muda e novos desafios surgem, há, frequentemente, uma ruptura entre as instituições existentes e as necessidades atuais. Essas instituições são apoiadas por legiões de stakeholders arraigados que se opõem a qualquer mudança fundamental.” (Fukuyama, 2011, p.7 - Tradução livre)
Por sua vez, Hartmut Rosa, em Social Acceleration, aponta que os problemas sociais hoje, como a pauta identitária e a identidade de gênero são percebidas na atual disputa entre “tradição” e “mudança social”, não derivam de uma falta de transformações na sociedade, mas de uma mudança acelerada em diversos tópicos, que acabam por esconder a inércia em que as nossas instituições se encontram. Zantvoort, falando sobre Rosa e Paul Virilio, que compartilha essa visão que chama de inércia polar, aponta, por exemplo, como temos um novo modelo de iPhone a cada 9 meses, o que traz a ideia de progresso, avanço e transformação, “mas na realidade não temos perspectivas de transformação social real, porém o passo acelerado da vida esconde o fato de que todos estamos presos em uma situação de ‘fim tha história’ com o capitalismo globalizado, onde caminhos divergentes de desenvolvimento não são mais possíveis.” (Zantvoort, 2015, p.7) A aceleração da sociedade de forma geral, então, leva a percebermos a noção de inércia a nível individual, social e político.
Tudo isso se coaduna com a situação que temos vivido atualmente, em especial no Brasil, sob a ótica do conflito a respeito da identidade de gênero. A pressão por mudança social se acelerou, como aponta Rosa, e com isso, a resistência das instituições estatais e dos grupos que tradicionalmente as comandam se mostram mais forte através da inércia, que chegou a evoluir para um conservadorismo tradicionalista que ativamente luta contra a mudança. O embate chegou ao ponto onde os dois campos, em pontos extremos, lutam pelo que Fukuyama chamou de “repatrimonialismo”, uma tendência geral das sociedades de voltarem a um status de privatização dos benefícios sociais para seus grupos.
O estado, então, apesar de seu papel transformador na história, enfrenta sérios problemas em se adaptar a transformações aceleradas, e sua reação de conservar o status quo é amplificada nesses casos, com a inércia institucionalista sendo mais uma peça, além da paixão tradicionalista de parte da população e do saber-poder de empresários morais, na luta contra a transformação social em prol de uma justiça objetiva.
(1). O Material originalmente denominado de “Escola Sem Homofobia” foi concluído em 2011 com o intuito de combater a discriminação de pessoas LGBTs, inclusive para auxiliar na abordagem sobre questões de sexualidade e de gênero por educadores. Conforme relata Richard Miskolci (2018), uma semana após o reconhecimento da união entre pessoas pelo Supremo Tribunal Federal, o ex-deputado e atual Presidente da República Jair Bolsonaro liderou movimento contra o programa, que foi apelidado pejorativamente como “kit gay” e posteriormente vetado pelo governo federal.
Referências Bibliográficas:
COSTA, Alexandre. Da “Sociedade sem governo” à “Sociedade contra o Estado”. Arcos, 2020.
COSTA, Alexandre. Flaynnery & Marcus e as origens da desigualdade política. Arcos, 2020.
COSTA, Alexandre. Ordem natural e autoridade política. Arcos, 2021.
DE JESUS, Jaqueline Gomes. Orientações sobre identidade de gênero: conceitos e termos. Brasília, 2012.
FOUCAULT, M. História da sexualidade, Volume 2, 1996.
FUKUYAMA, Francis, The Origins of Political Order: From Prehuman Times to the French Revolution (New York: Farrar, Straus and Giroux, 2011)
MISKOLCI, Richard. Exorcizando um fantasma: os interesses por trás do combate à “ideologia de gênero”. Cad. Pagu, Campinas , n. 53, e185302, 2018.
ROSA, Hartmut, “Social Acceleration: Ethical and Political Consequences of a Desynchronized High-Speed Society,” in High-Speed Society: Social Acceleration, Power and Modernity, ed. Hartmut Rosa and William E. Scheuerman (Pennsylvania State University Press, 2009), 101.
ZANTVOORT, Bart. Inertia, entrenchment and political decay. Philosophy and the Social Sciences Colloquium. Prague, 2015.