A autoexploração mascarada
Discentes: Guilherme Aranha; Izabela Lemes; Lucas Orsi, Sofia Vergara; Tiago Reis; Walter Cunha.
O advento da modernidade proporcionou uma mudança de paradigma no modo de viver da sociedade. Agora, ao invés de uma submissão a um ator em uma posição superior na organização do trabalho, há uma tendência de concentração do “chefe” e do “empregado” em uma só figura, marcada por um ideal de autonomia antes nunca visto.
Essa aspiração é constantemente relacionada pela mídia como sinônimo de autorrealização, porquanto a supressão da figura hierarquicamente superior, a que se reportaria o trabalho realizado por parte do empregado, traduz automaticamente uma falsa sensação de liberdade, consubstanciada na famosa frase “seja seu próprio chefe”.
No entanto, consoante o filósofo sul-coreano Byung Chul Han em “Sociedade do Cansaço”, a autorrealização moderna se converte em autodestruição, visto que os indivíduos se cobram em níveis arrebatadores, sem qualquer limite e contaminados pela ideia de que, ausente a figura da chefia, seriam mais livres para gerir suas agendas e projetos conforme seus desejos.
No século XVIII, Immanuel Kant em “Fundamentação da metafísica dos costumes” entendia o conceito de autonomia como escolher sempre de tal modo que as máximas dessa escolha sejam compreendidas como leis universais. Percebe-se na atualidade uma forte presença dessa vertente, já que os indivíduos não somente criam leis máximas para si mesmos enquanto empregados, mas para a figura de chefia que também está contido neles.
Situação essa que constitui um paradoxo entre liberdade e escravidão abordada na obra “Sociedade do Cansaço” em que evidencia um “[...] excesso de trabalho e desempenho que agudiza uma autoexploração […] Os adoecimentos psíquicos da sociedade de desempenho são precisamente as manifestações patológicas dessa liberdade paradoxal”.
Neste contexto em que impera a noção da sociedade do desempenho, o modelo de autonomia é modificado constantemente em detrimento de uma lógica abusiva de autoexploração invisível aos olhos dos insertos nesse ambiente.
Essa situação pode ser observada em dois exemplos, os indivíduos que estão cientes da exploração, mas se submetem ao sistema por necessidade financeira e o segundo grupo, de pessoas que, a priori, não possuem tanta necessidade de recursos, mas optam por seguir nessa lógica por sua conotação “moderna”.
No primeiro grupo, alguns dos, infelizmente, grandes expoentes atuais são os entregadores de aplicativos e os “colaboradores” de grandes grupos têxteis. Em ambos casos, os indivíduos têm certo grau de consciência de que serão explorados, apesar de ser concedida uma pequena porção de “autonomia” extremamente mascarada.
Especificamente no campo dos entregadores, não há uma figura presencial de chefia devido a intermediação se dar por um aparelho de celular, o que confere uma impressão falaciosa de autonomia. O segundo exemplo, dos “colaboradores” de empresas têxteis, segue a mesma lógica: os trabalhadores não estão sob a vigia de um superior na forma física, visto que laboram em condições insalubres a que nenhum chefe se submeteria sequer para uma visita. Toda a comunicação é feita periodicamente por um correspondente da empresa quarteirizada.
Já o segundo grupo, composto por indivíduos que, a priori, não possuem necessidade financeira premente, figuram os youtubers e influenciadores digitais. Profissões próprias da contemporaneidade, imersas na atmosfera laboral de produção e qualidade total de trabalho incessante, pressionadas pela linha de produção em massa de conteúdo em tempos exíguos, revelam igualmente grandes prejuízos.
Há uma tendência crescente de publicização das repercussões negativas nas esferas individuais dos profissionais modernos. A renúncia à autonomia nos moldes que foi proporcionada pela contemporaneidade aliada à liberdade coercitiva exposta por Byung Chul Han, em que há cumulação das figuras de chefia e empregado em uma só, denota mera aparência de autonomia quando, em verdade, contribui para perpetuar a autodestruição laboral patrocinada pelo próprio trabalhador.
Em nenhum dos exemplos acima mencionados é cumprida a jornada de trabalho prevista no inciso XIII do art. 7º da CF/88 que, em parâmetros normais, não pode ser superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais.
Da mesma forma, a própria Consolidação das Leis do Trabalho, CLT, em seu art. 62, III, (incluído pela Lei n. 13.467/2017), prevê a não submissão ao controle de jornada em determinadas hipóteses de atuação obreira remota, o que comprova ser a aferição desses tipos de trabalhos modernos medida por resultado e não por tempo de execução, conforme estabelecido legalmente.
Christophe Dejours (2012), ao analisar o mal-estar do mundo laboral contemporâneo, percebeu que os indivíduos inseridos em uma perspectiva de dedicação irrestrita e exclusiva à produção, com vistas à manutenção das expectativas criadas sobre a sua própria atuação, acabam por adoecer, na medida em que se submetem a esse sistema exaustivo e cada vez mais normalizado.
Essa “aceitação” irrestrita da sociedade a todo tipo de emprego que vem crescendo talvez derive da antiga concepção de que o trabalho dignifica o homem, pois apesar de a contemporaneidade enfrentar mudanças todos os dias, ainda carrega muitos princípios arcaicos.
Não são todos que validam o trabalho ininterrupto e imoderado. No entanto, muitos dos que enxergam o adoecimento da sociedade não se posicionam de maneira séria e permanente, ou seja, ao contrário de pequenos posts instantâneos nas redes sociais tão característicos da contemporaneidade.
Possivelmente essa parcela consciente da autoexploração está se acostumando ao novo modelo de trabalho já que, por voluntariedade ou não, todos dependem desse sistema. É difícil se manter sem os facilitadores modernos dos aplicativos e serviços online, pois tornaram-se inerentes à vida moderna.
No contexto atual, ninguém vislumbra uma mudança de grandes ou até mesmo pequenas proporções, de maneira a amenizar o modelo atual de trabalho. A autonomia é um princípio há muito almejado por boa parte dos indivíduos, os quais, agora, não se percebem inseridos em circunstâncias abusivas.
Dessa forma, mesmo inconsciente, a sociedade parece caminhar para a perpetuação da autoexploração no cenário laboral, seja por concepções de dignificação do homem, seja porque as ferramentas tecnológicas que geram esse cenário abusivo se tornaram inerentes à modernidade.
Referências:
BRASIL, Constituição (1988). Constituição da República Federal do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.
BRASIL, Decreto-lei n. 5.452, de 1° de maio de 1943. Aprova a Consolidação das Leis do Trabalho. Diário Oficial da República Federativa do Brasil. Brasília - DF, 14.9.2001.
DEJOURS, Christophe. Psychodynamics of work and the seduction theory. Psicol. estud., Maringá, v. 17, n. 3, p. 363-371, Sept. 2012.
HAN, Byung-Chul. Sociedade do cansaço. 2ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.
KANT, Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. São Paulo: Companhia Editorial Nacional, 1964.