A abertura conceitual de "povo": a identidade constitucional como uma construção discursiva
Discentes: Guilherme Aranha; Izabela Lemes; Lucas Orsi, Sofia Vergara; Tiago Reis; Walter Cunha.
O ódio do homem vai passar e os ditadores morrerão. E o poder que que eles tomaram do povo, vai retornar para o povo. [...] No décimo sétimo capítulo de São Lucas está escrito que o Reino de Deus está dentro do homem – não de um só homem ou de um grupo de homens, mas de todos os homens, em vocês! Vocês, o povo, têm o poder – o poder de criar máquinas, o poder de criar felicidade! Vocês, o povo, têm o poder de fazer desta vida livre e bela, de fazer desta vida uma aventura maravilhosa. Portanto – em nome da democracia – vamos usar desse poder, vamos todos nos unir!
O impacto decorrente do célebre discurso de Charlie Chaplin em "O Grande Ditador" (1940) não é apenas por ser em seu primeiro filme falado. O conteúdo de sua fala, inclusive, o levou a acusações de ligação ao comunismo e ao impedimento de retorno aos EUA. Dar poder ao povo, ainda que em uma comédia cinematográfica, parece ter incomodado até mesmo o país cuja Constituição inicia com um emblemático “We The People” (“Nós, o Povo”).
Em abstrato, “Nós, o Povo” parece abarcar todos, tanto os constituintes quanto aqueles que se encontram sujeitos à Constituição, os governantes e os governados, em um sentido bastante semelhante ao contrato social rousseauniano, gerando unidade a partir da multiplicidade por meio da adesão à vontade geral. Nesse sentido, considerando que “Nós, o Povo” ao mesmo tempo formula a Constituição e voluntariamente a ela se submente, parece ser irrelevante uma discussão a respeito de “quem” seria esse sujeito constitucional.
Entretanto, quando a unidade “Nós, o Povo” é vista em concreto, ela se fragmenta. Por um lado, os autores da Constituição de 1787, um grupo de homens brancos e proprietários, não representavam todos aqueles que estariam sujeitos ao texto constitucional. Por outro, inserido em seu cenário histórico próprio – longe de encontrar uma unidade –, verifica-se uma contradição absoluta.
Isso porque a Declaração de Independência Americana de 1776 afirma que “todos os homens nascem iguais”. Ora, neste sentido, “Nós, o Povo” deveria se referir, ao menos, a todos os adultos com residência permanente nos Estados Unidos em 1787. Todavia – como a Constituição de 1787 omite a escravidão –, não se pode dizer, por certo, que “Nós, o Povo” incluía os escravos afro-americanos que lá viviam. Percebe-se, portanto, uma inconsistência entre “Nós, o Povo” e “todos os homens nascem iguais”. Este é um exemplo que nega a possibilidade de qualquer identidade entre os autores da Constituição e todos que se encontravam sujeitos a ela.
É bem mais fácil determinar o que eles não são do que propriamente o que eles são.
Por entender que os mortos não deveriam governar os vivos, Thomas Jefferson defendia que as constituições deveriam ser reescritas a cada geração. Em cartas trocadas com James Madison, indicou inclusive uma data de validade: dezenove anos, sob pena de sua extensão se converter em “um ato de força, e não de direito”. A proposta de Jefferson caiu por terra [1]. Constituições não têm a pretensão de se fazer valer para apenas uma geração, uma época específica, mas de se estender pela eternidade, de vincular o tempo.
“O que é o presente? É uma cousa relativa ao passado e ao futuro. É uma cousa que existe em virtude de outras cousas existirem” (PESSOA, 2013, p. 83). Sob o pseudônimo de Alberto Caeiro, Fernando Pessoa é cirúrgico em sua definição. De fato, entre amnésias e projetos, está o instante, o presente, e entre eles há um elo: a memória. “Imersa no presente, preocupada com o futuro, quando suscitada, a memória é sempre seletiva. Provocada, revela, mas também silencia” (AARÃO REIS, 2004, p. 29).
Isso porque lembrar também é esquecer. Faces de uma mesma moeda, são habilidades poderosas: “Recordo-o (não tenho o direito de pronunciar esse verbo sagrado, apenas um homem na terra teve o direito e esse homem está morto)” (BORGES, 2007, p. 583, tradução e grifo nossos). O homem a que Jorge Luis Borges se refere é Ireneo Funes, o memorioso, quem tem o dom de se lembrar de tudo de modo absoluto. Ao longo do conto, é possível perceber a contraposição entre a (super)memória de Funes e a do autor, quem em vários momentos se justifica pela imprecisão do relato.
Apesar disso, Funes define sua memória como um “depósito de lixo”, que não lhe permitia dormir - por não poder se distrair do mundo - tampouco pensar - generalizar, abstrair. (BORGES, 2007). É daí que se se conclui pela impossibilidade de lembrar sem esquecer. O esquecimento, como ação inteligente, se torna uma condição sine qua non para o conhecimento, para o pensamento. Não obstante, o oposto - esquecer tudo - resultaria o mesmo efeito: uma imobilidade. O acúmulo e o vazio não podem ser absolutos, mas equilibrados.
Neste sentido, em que medida teria a Constituição de 1988 resgatado o passado, possibilitado o presente e programado o futuro? Esta é uma pergunta capciosa. Com efeito, para bem examiná-la e respondê-la, é preciso da astúcia para entender a inevitável correlação entre constituição e tempo. Nela, passado, presente e futuro conversam, de modo que o tempo foi, é e será: alles ist verbunden [2].
A partir disso, as experiências pretéritas – sejam suas glórias, sejam seus traumas – aliadas às expectativas futuras – tanto desejos quanto pavores – conduzem os anseios do presente em uma quase coexistência. Nessa “fábrica constitucional” (SAJÓ; UITZ, 2017), concorreriam para a elaboração de uma constituição acordos, medos e (des)confianças.
Mas de quem? É nesse sentido que Michel Rosenfeld (2003) se propõe a analisar a identidade do sujeito constitucional. Para tanto trabalha com a relação do “eu” com o “outro”, e entende que entre eles há um hiato, um vazio. Essa lacuna existiu, existe e existirá, desde sempre e para sempre. A moldura desse vácuo, no entanto, não é única – variando conforme os fatores sociais, culturais, históricos, políticos, espaciais, temporais etc. – e, a fim de preenchê-la, de promover um equilíbrio entre eles, apresenta a identidade constitucional, a qual, por ser uma ausência, deve ser preenchida por meio de um processo discursivo, que tem como ferramentas a negação, a metáfora e a metonímia, que se combinam – isto é, interagem – “para selecionar, descartar e organizar os elementos pertinentes com vistas a produzir um discurso constitucional no e pelo qual o sujeito constitucional possa fundar a sua identidade” (ROSENFELD, 2003, p. 50), suprindo aquele hiato.
A partir desse processo, a identidade do sujeito constitucional se utiliza, em primeiro lugar, da negação, que ocorre em três estágios. No primeiro, em vez de dizer o que é, diz o que não é – identidade puramente negativa –, de modo que, para se assegurar como uma identidade autônoma e principal em contraponto à identidade pré-constitucional, tem por base a rejeição, o repúdio, a repressão, a exclusão e a renúncia. Há uma ânsia por um constitucionalismo ex nihilo – que romperia integralmente com a tradição pré-revolucionária contra a qual se luta.
Adiante, no mesmo sentido do conto “Funes, o memorioso”, tem-se que o vazio não pode ser absoluto, tendo de ser combinado com o acúmulo. É assim que, em face da carência, o sujeito constitucional busca uma identidade positiva: “os objetivos do constitucionalismo não podem ser perseguidos no vácuo; eles requerem o estabelecimento de um aparato institucional viável que deve, necessariamente, se assentar na história, nas tradições, no patrimônio cultural da comunidade política pertinente” (ROSENFELD, 2003, p. 53). Ocorre uma reincorporação das concepções anteriormente excluídas. Apesar disso, nesta fase, ao contrário de retornar à estaca zero, há uma seleção de quais – e de como – identidades descartadas se incorpora, as quais ocupam posição distinta da que ocupavam enquanto pré-constitucionais.
O terceiro estágio, por sua vez, é a negação da negação, ou seja, “a negação da proposição segundo a qual a busca da identidade envolve a perda da subjetividade” (ROSENFELD, 2003, p. 56). Aqui há a atribuição de um papel de destaque ao sujeito constitucional: ele é o autor de sua identidade e não mero fruto de fatores externos. Isso porque, malgrado o material “bruto” seja externo, a construção da identidade constitucional não decorre da perda de subjetividade, mas de um trabalho próprio, ativo, de seleção, de combinação, de organização, de ressignificação, de emprego e de reintegração dos elementos externos à moldura normativo-constitucional em prol de uma identidade distinta.
Com uma identidade enfim positiva, é de preciso de preenchê-la, de completá-la. Surge, então, uma segunda ferramenta de que se pode fazer uso: a metáfora. À dialética entre identidade e diferença, contribui para o lado da identidade – enquanto similaridade –, fornecendo-lhe base discursiva ao criar, forjar, semelhanças e correspondências – parciais e temporárias – com as diferenças, consolidando relações de identidade (ROSENFELD, 2003). O uso desse recurso, todavia, pode ser perigoso, uma vez que, ao promover uma descontextualização, pode minimizar e até dissimular diferenças que importam, como de políticas que promovam a igualdade de gênero e racial.
Em sentido contrário a essa descontextualização, a metonímia funciona como uma tradução, uma verdadeira contextualização, de modo a – antes da similaridade – promover uma proporcionalidade de tratamento a fim de se chegar a uma igualdade. A metonímia, portanto, revela e destaca singularidades e particularidades. Isso decorre do próprio pluralismo constitucional, de modo que a identidade constitucional não se confunde com e exige mais que semelhanças. É dizer, a identidade constitucional “deve incorporar as diferenças por meio da contextualização para evitar a subordinação de uns aos outros no interior do mesmo regime constitucional” (ROSENFELD, 2003, p. 74).
É preciso entender que esses métodos são complementares, “se combinam para remoldar os materiais hauridos da herança sociocultural da comunidade política em uma identidade constitucional” (ROSENFELD, 2003, p. 91). Enquanto a negação é responsável por delimitar e moldar o sujeito constitucional, por lidar como mediadora entre identidade e diferença, são a metáfora e a metonímia que lhes dão conteúdo: “somente a metáfora e a metonímia revelarão qual identidade – ou mais precisamente, quais identidade – e qual diferença – ou quais diferenças – devem ser mediatizadas pela negação para a produção de uma reconstrução plausível de um sujeito constitucional adequado” (ROSENFELD, 2003, p. 83).
O manejo dessas ferramentas discursivas para se atingir uma identidade constitucional se relaciona com o fato de que “fazer uma constituição é um ato sobretudo político: conduzido por atores políticos, responsáveis por selecionar, fortalecer, implementar e avaliar escolhas sociais; moldado pela ordem sociopolítica em que está a qual também influencia” (KLEIN; SAJÓ, 2015, p. 420). É o mesmo que se dizer que “Compreender o fenômeno constitucional em sua dimensão histórica é entender a maneira como se movimentam e se relacionam a soberania popular e o Estado de Direito” (CATTONI DE OLIVEIRA; PATRUS, 2016, p. 172).
Em se tratando da Constituição de 1988, pode-se dizer que ela nasceu de um processo social, de um diálogo social amplo, de uma afirmação de comunidades historicamente excluídas que, no momento da Assembleia Nacional Constituinte – ANC, conseguiram se afirmar como protagonistas, como atores relevantes. A ANC foi um ponto de inflexão na trajetória constitucional brasileira, que sempre foi marcada por um conjunto de princípios que decorria não de um processo de inclusão na elaboração do texto constitucional, mas de princípios de um determinado seguimento da sociedade brasileira, configurando-se como um espaço de exclusão e de invisibilidade.
Passados 32 anos desde a promulgação da Constituição, surge o questionamento: ainda que a real intenção dos constituintes seja plena e claramente acessível, quanto e em qual medida e extensão ela deve ser relevante ou vinculante para uma determinada geração subsequente? Ressurge a proposta de Jefferson: os mortos não podem governar os vivos.
Nesse sentido, é preciso atualizar o projeto constituinte – o projeto, ressalte-se, e não a Constituição, como alguns propõem. Isso porque a Constituição de 1988 é “um projeto que transcende o momento de sua promulgação [...] e que se desdobra além do marco inaugural, no sentido de uma abertura à reconstrução democrática” (CATTONI DE OLIVEIRA; PATRUS, 2016, p. 186). Neste sentido, a fim de que se efetive uma “uma cidadania viva e atuante, zelosa de seus direitos” (CARVALHO NETTO, 2003), é preciso que se reconheça a identidade aberta, polissêmica e plural do sujeito constitucional brasileiro, que deve assumir uma postura ativa e crítico-reconstrutiva, para (re)afirmar o momento constituinte de 1987/1988 como “um fenômeno discursivo que ganha legitimidade no tempo, como um acontecimento sem início nem fim definidos” (CATTONI DE OLIVEIRA; PATRUS, 2016, p. 186).
O povo, em toda sua complexidade, abertura e pluralismo, não pode mais ser visto como totalidade a ser apropriada pelo Estado ou pelo governante. O povo, como identidade, é uma construção discursiva – simbólica, representativa, fragmentária – para preencher um vazio, um hiato no lugar e no momento em que buscamos uma fonte última de legitimidade e autoridade para a ordem constitucional. É preciso que ele seja reconstruído, uma vez que, por ser inerentemente incompleto, está em constante – ainda que impossível – busca de completude. Não obstante, a ausência do sujeito constitucional não nega seu caráter indispensável.
[1] Apesar disso, Zachary Elkins, Tom Ginsburg e James Melton, em estudo comparado, apresentaram que, de fato, a duração média das constituições mundiais é, coincidência ou não, de dezenove anos. (ELKINS; GINSBURG; MELTON, 2009, p. 207).
[2] Do alemão, "tudo está conectado".
Referências bibliográficas
AARÃO REIS, Daniel. Ditadura e sociedade: as reconstruções da memória. In.: AARÃO REIS, Daniel; RIDENTI, Marcelo; SÁ MOTTA, Rodrigo P. (orgs.). O golpe e a ditadura militar: 40 anos depois, 1964-2004. Bauru: Edusc, 2004. p. 29-52.
BORGES, Jorge Luis. Fricciones. In.: BORGES, Jorge Luis. Obras Completas I. Buenos Aires: Emece Editores, 2007.
CARVALHO NETTO, Menelick de. A hermenêutica constitucional e os desafios postos aos direitos fundamentais. In.: SAMPAIO, José Adércio Leite (org.). Jurisdição constitucional e os direitos fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 141-163.
CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo; PATRUS, Rafael D. Constituição e poder constituinte no Brasil pós-1964: o processo de constitucionalização brasileiro entre “transição e ruptura”. Quaderni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico Moderno, v. 45, p. 171-191, 2016.
ELKINS, Zachary; GINSBURG, Tom; MELTON, James. The Endurance of National Constitutions. New York: Cambridge University Press, 2009.
KLEIN, Claude; SAJÓ, András. “Constitution-Making: Process and Substance”. In.: ROSENFELD, Michel; SAJÓ, András. (ed.). The Oxford Handbook of Comparative Constitutional Law. Oxford: Oxford University Press, 2012, p. 419‐441.
PESSOA, Fernando. Poemas completos de Alberto Caeiro. Organização de Carlos Felipe Moisés. São Paulo: Ática, 2013.
ROSENFELD, Michel. A Identidade do Sujeito Constitucional. Tradução de Menelick de Carvalho Netto. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003.
SAJÓ, András; UITZ, Renáta. The Constitution of Freedom: an introduction to legal constitutionalism. Oxford: Oxford University Press, 2017.